segunda-feira, 23 de agosto de 2010

MANOEL HENRIQUE PERIERA, VULGO BESOURO MANGANGÁ E O DISCURSO POÉTICO DA MORTE


José Gerardo Vasconcelos[1]
Esse trabalho é parte dos estudos de pós-doutoramento desenvolvidos junto a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia em 2002, sobre o discurso poético constituído em torno do capoeira mais famoso da região do Recôncavo Baiano. Nascido provavelmente em 1895 e falecido em 8 de julho de 1924. Abordaremos aqui algumas versões sobre a morte de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordão de Ouro ou Besouro Mangangá na constituição de um mito popular.
Tem-se a transmutação da morte em vida eterna. Imagem do corpo deslocado da temporalidade. Símbolo de coragem ou quem sabe composição poética de uma força pura da natureza participando de todas as rodas imaginárias da cultura negra. Um ponto de resistência capaz de ressoar no corpus poético do filho querido de ogum ao capoeira moderno que canta a valentia do mestre Besouro gingando em novos campos de teatralidade e, ao mesmo tempo, dançando a malícia de um jogo que reúne as artes do espetáculo apesar do limite despendido pela transitoriedade humana.  A morte poderia encerrar o ciclo biológico da vida.  
Entretanto, toda morte representa um renascimento. Um lugar em que, nas consciências arcaicas, as experiências elementares - segundo MORIN (1970, p. 103) – são das  metamorfoses, das desaparições e das reaparições, das transmutações, toda morte anuncia um renascimento. Nascimento e perecimento participam do mundo, alternâncias de bem e mal, transmutações de signos que derrapam nos interstícios do tempo e clamam pela eternidade. MORIN (1970, p.103) nos lembra que
O conceito cosmofórico primitivo da morte é o da morte-renascimento, para o qual o morto humano, imediatamente a seguir ou mais tarde, renasce num novo vivo, criança ou animal.
É que o homem “não” pode tão imediatamente morrer. Em casos excepcionais, determinados indivíduos continuam muito mais do que vivos. É vida que efetivamente encontra sentido em outro tempo ou em outra comunidade discursiva, que passa a selecionar eventos e acontecimentos que tornam o mundo humano consciente de sua transitoriedade. Desloca-se ao sempre novo recomeçar e integra-se ao divino mundo da imortalidade. Formam-se os mitos com a força suficiente para saltar o tempo. De acordo com ELIADE (1991, p.54),
Um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo individual, cronológico, “histórico” – e o projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma ruptura do Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o tempo sagrado.
É neste lugar sagrado que se pode reverter o limite da humanidade, torná-la simples ou demasiadamente humana. Não é à toa que estudar os mistérios da morte, de acordo com CASSORLA (1991, P. 18),
Por mais que se queira fazer ciência, acaba impelindo o autor para o terreno da poesia. O pesquisador e os pesquisados, com freqüência, são obrigados a utilizar figuras poéticas para poder expressar o indizível ou o inefável.     
O homem quer torna-se o animal de si mesmo, revelar-se o animal que mesmo é; um animal que é capaz de deitar o olhar por sobre o outro e devorá-lo pela pura e simples capacidade de trespassar a cultura pela satisfação da crueldade. Para muito além da “eterna” “bondade” humana, existe um animal ou muitos animais humanos que escapam as organizações binárias e, ao mesmo tempo, lança suas linhas de fuga que se vão articulando a sempre novas linhas de fuga, que são moleculares. Como nos mostra DELEUZE (1996, p. 94): sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa as organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação.
Besouro é um desses animais poéticos que transmuda o tempo de desterro e reencontra em linhas de fuga da temporalidade um outro modo de dizer o seu tempo. Uma zoopoética intercala-se entre tantos pontos que se fazem necessários para compor um corpus estendido para muito além dos nossos limites  temporais.
Esse animal é capaz de prometer. É DERRIDA(2002, p.15) quem nos lembra o início da segunda dissertação da Genealogia da moral de NIETZSCHE (1998, P. 47): criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? E complementa: A natureza ter-se-ia dado como tarefa criar, domesticar, “disciplinar” (beranzüchten) esse animal de promessas. Esse animal que promete a felicidade, a eternidade e a verdade e, como toda eternidade, pode ser vazada pela força que se instaura imiscuída no jogo de promessas na história ou quem sabe no próprio sentido do jogo da vadiação ou da capoeiragem.  
É nesse jogo que Besouro, feito imortalizado, pela força de sua ação, com a arte da malandragem, o filho de querido de Ogum é incapaz de, simplesmente, morrer. Ele necessita ir muito além do inefável. É um corpus enigmático, uma tempestade de força e de resistência; uma sempre nova possibilidade de guerra e de combate que se renova para vazar o seu tempo.
É que Besouro é uma estrela, uma estrela grande, que ilumina todos os tempos e encontra no infinito o céu e a terra. De acordo com AMADO(1973, 126-127), As mulheres dizem que ele está espiando os malfeitos dos homens (barões, condes, viscondes, marqueses) de Santo Amaro. Está vendo todas as injustiças que os marítimos sofrem. Um dia voltará para se vingar.
De nada adiantaria colocar a polícia contra ele. Não importava a quantidade de homens. Todos seriam destruídos pelo rabo-de-arraia, rasteira e cabeçada braba. Em alguns casos, o recurso da surra de facão, ou quem sabe, a navalha no pé poderia ser utilizada no jogo da capoeiragem.  Ele voltará para se vingar. Deve voltar como muitos homens do mar, reivindicando direitos, outras leis e igualdade social.  Essa poética literária que AMADO (1973) entoa como um cântico, uma récita, uma beberagem capaz de embriagar, no silêncio, os mortais que se tornam ávidos e sedentos pela beleza discursiva reencontra a visibilidade da história, encobrindo um enorme campo retraído do invisível. É nesse terreno que CALVINO (1990, p. 21) informa que a poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nasce de um poeta que não nutre qualquer dúvida quanto ao caráter físico do mundo. Besouro cantado, entoado, versejado ou descrito pela literatura; Besouro tomado de empréstimo como um nome dado ao capoeira é também físico.
Mestre Burguês (1986:32) conta que certa vez Besouro estava desempregado e saiu em busca de trabalho. Conseguiu emprego na Colônia Santa Rita. No dia do pagamento, sabia que havia um costume do patrão de chamar só uma vez e, na segunda, dizia que havia “quebrado para São Caetano”. Isso significava dizer que o empregado não receberia. Não havia possibilidade de reclamar. Se o fizesse, era imediatamente espancado como correção pela audácia. Esse costume – imposto pelo patrão – era sinal de força e orgulho. Era comentado nas festas e rodas dos senhores de engenho da região.  Conta mestre Burguês, que:
Besouro no dia do pagamento deixou que o patrão lhe chamasse duas vezes. Todos receberam naquele dia, menos Besouro. Então invadiu a casa do patrão pegou-o no cavanhaque e gritou: Pague o dinheiro de Besouro Cordão de Ouro. Paga ou não paga? E o patrão com as mãos trêmulas  ordenou que lhe pagasse o devido e o mandasse embora. Besouro tomou o dinheiro e andou. 
Narra ainda BURGUÊS (1986: 33) que Besouro foi se empregar na fazenda do Dr. Zeca, o qual tinha um filho genioso que logo se desentendeu com Besouro.
O fazendeiro tinha um amigo que era administrador da Usina Maracangalha de nome Baltazar. Mandaram então Besouro entregar uma carta. Baltazar recebeu a carta, leu, e disse para Besouro esperar pela resposta até o dia seguinte. No outro dia Besouro, quando foi buscar a resposta, viu-se rodeado por uns 40 homens armados. As balas nada fizeram contra ele. Um homem matou-o a traição com uma faca. Só assim é que puderam acabar com Besouro e sua saga de homem valente.
Outra versão dentre tantas apresentadas sobre a morte de Besouro corrobora esta descrita pelo mestre Burguês. REGO (1968:265) descreve um possível desentendimento entre Besouro e Dr. Zeca (Jeca) e, ao mesmo tempo, amplia com a inclusão do filho Memeu, que entrou em desentendimento com Besouro. 
Mandaram então uma carta para Baltazar, pelo próprio Bezouro, pedindo ao administrador que desse fim do Besouro por lá mesmo. Baltazar recebeu a carta, leu, e disse a Besouro que aguardasse a resposta até o dia seguinte. Besouro passou a noite na casa de uma mulher da vida; no outro dia foi buscar a resposta. Quando chegou na porta foi cercado por uns 40 homens, que o iam matar. As balas nada fizeram; um homem o feriu à traição, com uma faca. Foi como o cosseguiram matar.
A linguagem poética de VIEIRA (2001:13) sobre a morte de Besouro refere-se ao castigo aplicado ao filho do dono da usina. Besouro teria feito o jovem Memeu – filho do patrão - montar em um burro brabo, como forma de punição e justiçamento aplicados por Besouro. Isso foi motivo suficiente para o patrão mandar executar Besouro Cordão de Ouro. 
E o rapaz que não tinha/ traquejo com montaria/ Mal montou e foi pro chão/era assim que acontecia/ No burro, mal se montava/ Ela todo se encolhia/ Burro de primeiro salto/ Derrubava e não saía. O rapaz adoeceu/ Seu pai ficou irritado/ Não atirou em Besouro/ pois tinha o corpo fechado/ então tramou sua morte/ Com jagunço contratado/ não demorou, o serviço/ Foi logo executado (VIEIRA 2001:13-14)
Raimundo José das Neves, Mestre Macaco, 36 anos, 28 de capoeira. Iniciou seus estudos de capoeira com Mestre Ferreirinha, na década de 1970. Entretanto, teve que mudar para a Regional - no horário das aulas do mestre Ferreirinha, Mestre Macaco estava na escola. Concluiu o ensino médio e, no momento atual, é um profissional da capoeira, em Santo Amaro da Purificação-BA.
Informou-me Mestre Macaco ao se referir à história da morte de Besouro Cordão de Ouro, sobre uma determinada usina em Maracangalha - zona canavieira – que o proprietário tinha o hábito de deixar de pagar aos trabalhadores, alegando que havia quebrado para São Caetano – padroeiro da Usina.
Ao saber dessa história, Besouro, que gostava de tomar o partido dos desfavorecidos, alistou-se na referida usina. Na segunda semana, quando foi receber o salário- relata Mestre Macaco - com os outros funcionários, o patrão disse que havia quebrado para São Caetano. Mestre Macaco afirmou:
Besouro segurou o patrão pelo cavanhaque, neutralizou os outros capangas e fez com que o salário dele e dos outros fossem pagos. Nesse mesmo dia tinha dado uma surra no filho desse proprietário de terra, próximo a usina de Maracangalha. Ele se desloca para Santo Amaro e quando passa um período ele volta para rever as mulheres de programa que ele conhecera. Ele tinha um chamego daquele lado. Essa mulher foi paga, teve a relação sexual com ele. Nesse caso quebrou os encantos que ele tinha. Foi tudo já armado. Quem pagou isso foi esse proprietário que ele tinha dado uma surra.
Mestre Macaco analisa o conflito que se instaurou em torno da morte de Manoel Henrique muito mais do ponto de vista político, embora inclua a versão do corpo fechado, da faca misteriosa e da mulher que passou a noite com Besouro. Amplia a versão incluindo a personagem que fora contratada pelo usineiro. De acordo com o Mestre, o rapaz contratado era muito mais novo do que ele, talvez nem fosse maior de idade.
Foi preparada uma outra tocaia. Contam que quando ele atravessou a cerca a camisa rasgou-se. Ele falou que não estava no dia dele. Quando ele chegou nas proximidades do bar, foi feita a emboscada e, segundo contam, ele foi perfurado com uma faca preparada para esse tipo de situação, que é a faca de Ticun. Besouro mesmo assim caminhou e foi trazido de Maracangalha - em uma canoa - até Santo Amaro.  Chegando em Santo Amaro, na Santa Casa de Misericórdia não houve muito interesse em atende-lo. Ele tinha muitos inimigos e ele morre no hospital.   
Esse relato aproxima-se ao do mestre João Pequeno, com a diferença de que o discípulo de Pastinha concentra mais sua versão em torno da mandinga quebrada quando Besouro mantve relação sexual no período que deveria obrigações aos orixás. João Pequeno assinala que seu pai era primo de Besouro. Todavia insiste na idéia de que o corpo fechado pode ser quebrado quando esse corpo se encontra sujo pela sexualidade. Pessoa de corpo sujo são as que têm relações sexuais, eles estão despreparados e com o corpo aberto a qualquer luta, e foi aí que aproveitaram do finado Besouro (PEQUENO, 2000: 17).
O Mestre insiste na versão do corpo sujo proporcionado pela impureza da atividade sexual. Relata o acontecimento que antecede a morte de Besouro:
Ele dormiu na casa de uma mulher no outro dia quando ele vinha para a casa passando debaixo de uma cerca de arame, o arame arranhou nas costas dele e ele chamando disse: “estou mal, se qualquer pessoa me atacar hoje estou perdido”. E foi nesse dia que furaram ele em uma briga, que durou o dia inteiro. Então, o capoeirista que usa essas rezas não pode ter relações sexuais senão perde o efeito (PEQUENO, 2000: 17).
Mestre Dimas relata o fato a partir de histórias que ouviu e de pesquisa realizada por ele na região. Garante que Besouro estava bebendo em uma venda, não sabe exatamente onde. Tinha acabado de retornar de alguma festa ou da casa de alguma mulher. Isso mantém a versão do corpo aberto pela sexualidade. Nas palavras do Mestre, ele era justiceiro e os senhores de engenho não gostavam dele. Um misto trafega entre um campo político e outro que se expressa na religiosidade e nas obrigações com os santos protetores.
Ninguém podia disputar na mão com ele – quem era doido de sair na mão com Besouro ou na faca. Não tinha jeito. E ele vinha de uma tradição de jogar com a navalha do pé. Ele tinha a sina dele – a mandinga – que não poderia ter relações sexuais em determinados dias. Tinha o dia certo.
Foi então que apareceu no local um garoto que estava contratado para atacar Besouro. Essa mesma versão aparece no discurso do Mestre Macaco. 
Alguém deu a faca de Ticum. O garoto estava preparado para mata-lo. Brincou com o garoto que, inesperadamente, sacou da faca e furou Besouro. Cortado caiu, gofando, bebendo o próprio sangue. O ticum além de cortar, solta uma tinta que infecciona. O Garoto furou e logo fugiu. Ele que estava com o corpo aberto, tinha acabado de ter relações sexuais com a tal mulher.
Mestre Dimas argumenta que Besouro foi levado para o hospital. Entretanto, embora fosse um negro muito forte, não resistiu à distância e à falta de socorro da Santa Casa de Misericórdia. 
Da Usina de Maracangalha até Santo Amaro é muito longe. Ele ainda resistiu. Entretanto sua fama era muito grande, os proprietários automaticamente foram ao hospital e dificultaram ou impediram o socorro. Se fosse prestado socorro de forma adequado – ele era muito forte – teria escapado. Foi perdendo muito sangue e veio a falecer.
Mestre Atenilo, em entrevista concedida ao Mestre Itapoã (Raimundo César Alves de Almeida ), ilustra a possibilidade de criação. Nesse relato já transmitido por outros capoeiristas, Besouro morreu em Cumbaca. Morreu com uma facada. Todas as versões são categóricas em afirmar que foi facada. Nesse aspecto, encontro unanimidade, o que se encaixa perfeitamente com o documento expedido pela Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, no relato organizado por ALVES (1988: 48), o entrevistado – Atenilo – diz que Besouro, mesmo furado, não morria. Ele era um além-humano. Não poderia morrer de qualquer jeito. Uma morte simples não seria tolerada. Caberá ao mito – no mínimo – uma morte espetacular.  
Ele não morria, porque ele depois de furado, dizem, ele meteu a mão na faca e cortou os intestinos, ele cortando e comia. E ele vivo, até quando levaram ele pró hospitá, quando chegou no hospitá o médico disse: se ele não tivesse cortado os intestinos...
Mestre Itapoã pergunta novamente, como se quisesse se certificar do que acabara de ouvir: Ele comeu os intestinos, que história é essa?- Mestre Atenilo responde: Ele cortava rapaz, era maluco, cortava um pedaço e botava na boca. Quando chegou no hospitá não tinha mais ar, o ar já tinha saído e ele morreu (...)Até ele não queria escapar.
Sr. Danilo do Acupe, 67 anos, assegurou, em entrevista concedida em 16.06.2002, que Besouro tinha o corpo fechado. Mas o afilhado dele encontrou o ponto fraco. Pegou o Mestre no dia fraco; no dia em que ele estava desprotegido pela atividade sexual. Não tem mandingueiro que resista. Além disso, Cordão de Ouro foi furado com uma faca de ticum, que é a árvore dos mistérios.
Dia de sexta-feira o homem não pode ter relação com mulher. Besouro caiu porque o afilhado o ajeitou, pegou o dia fraco dele e ajeitou ele com uma faca de que? De Ticun. Não tem mandingueiro que resita. Só basta bicar, só basta tocar. Aquele que tem um espinho, que dá aquela frutinha.
Mesmo tendo passado a noite com uma mulher não haveria problema. Sr. Danilo é categórico em afirmar que só pela mulher Besouro não seria derrubado. Besouro é vítima da inocência. A potência transmudada em maldade. Besouro morre no da 8 de julho de 1924. De acordo com o calendário de 1924, o dia 8 de julho é uma terça-feira, que segundo VERGER (1997) é dia dedicado a ogum. Coincidência ou não a possibilidade de articulação entre sexualidade, mandinga, corpo fechado preenchem de possibilidades a linguagem poética.
Foi o menino – afilhado – que estava com maldade com ele. O que contam é que Besouro foi traído pelo afilhado. Isso ocorreu na toga do saveiro. O menino ficou esperando. Quando ele voou já era tarde. O punhal já tinha cravado nele. Caiu no próprio barco. Quando o cara botou nele, já estava preparado. Ali tem um veneno. O ticum solta um veneno. Quando botou nele acabou o homem
A irmã de Besouro– Dona Dormelina Pereira dos Anjos, Dona Adó, em entrevista gravada em Santo Amaro no dia 18.06.2002, garantiu que Besouro estava dormindo. Não entrou em detalhes sobre os motivos de sua morte. Provavelmente por causa de uma mulher. Ele estava dormindo. Mataram ele dormindo. Ninguém sabe quem matou. Morreu em Maracangalha. Contestou a possibilidade de Besouro estar em alguma festa ou bodega.  Foi uma morte construída pela força da traição.  Ao mesmo tempo integrou à linguagem poética dois arquétipos importantes da mitologia: o sono e a morte, que são irmãos gêmeos; filhos da noite, que habitam para muito além dos lugares que o Sol pode iluminar. São lugares onde os galos nunca anunciam a chegada da aurora, chorando o orvalho pela decrepitude de seu amado Titão. De acordo com MÉNARD (1991, p. 119),
(...) o falecimento, filho da noite, habita perto do sono, seu irmão. Este, amigo dos mortais, passeia calmamente no meio deles, na terra; mas o falecimento não conhece piedade e tem um coração de bronze. Nunca deixa o infeliz de que se apodera, e inspira horror aos próprios deuses imortais.
Besouro põe em conflito os dois irmãos. O sono que passeava livremente pela vida e rompeia o fio da existência com a traição e crueldade humana; do enfraquecimento da mandinga, movido pela força da sexualidade e, ao mesmo tempo, o que se torna indispensável - proteção ao mito. Nada poderia abatê-lo. Nem a força da mandinga, impureza, o ticum ou interferências políticas. Na realidade, é como se dissesse: só poderiam matar Besouro dormindo. Não haveria outra forma. O sono impediria a força do mito; imobilizaria a cabeçada, a navalha no pé, o rabo-de-arraia, a rasteira ou a surra de facão. Não haveria força humana disponível para detê-lo. Besouro só poderia morrer à traição.
Para AMADO (1973, p. 127): cortaram  seu corpo todo. Foi preciso catar os pedaços para o enterro. Mas, como poderia ser cortado à faca o ilustre filho de Ogun? Ele não poderia morrer de ferro. Temos ainda uma retaliação poética, uma mutilação que lembra o menino Dioniso. O ritual da criança cortada em postas pelos titãs e cozida no vinho, formando uma macabra beberagem e, ainda assim, escapou o divino coração do deus que renasceu na coxa de Júpiter. Pela força da paixão representada pelo coração, o deus-menino sobreviveu embriagando a todos em todos os lugares. Besouro trafega entre a vida e a morte como um deus que sempre viverá, porquanto é imortal.  
Besouro é Manoel Henrique Pereira - vaqueiro, mulato escuro, natural de Urupy, residente na usina de Maracangalha; dava entrada na Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro da Purificação – Bahia, como um ferimento perfuro-inciso do abdômen. Veio a falecer no dia 8 de julho de 1924 às 7 horas da noite, conforme registro na folha 42v. do livro n° 3, linha 16, leito 418, de entrada e saída de doentes. O referido documento consta nos autos do processo (PEREIRA 1920 –1927: 21) movido por Caetano José Diogo contra Manoel Henrique.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Raimundo César Alves. (Mestre Itapoã).. Mestre Atenilo. O “Relâmpago” da capoeira regional. Salvador: UFBA, 1988. 61p.
AMADO, Jorge. Mar morto. São Paulo: Martins, 1973.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo : Companhia das Letras, 1990. 142p.
CASSORLA, Roosevelt M.S. Como lidamos como o morrer – reflexões suscitadas no apresentar este livro. In. Da morte – estudos brasileiros. Cassorla, R.M.S. (organizador). Campinas : Papirus, 1991. pp 17-23.
DELEUZE, Giles. GUATTARI.  Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 120 p.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 92p.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos – ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 178p. 
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana. São Paulo: Opus, 1991.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Portugal: publicações Europa-América, 1970. 
NIETZSCHE, Friedrich. Para a genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____.  Além do Bem e do Mal – prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_____. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
PEQUENO, João. Uma vida de capoeira. Salvador: [ s.e.], 2000. 48p.
PEREIRA, Caetano Cícero. Certidão de óbito. Cartório de Registros Civis de Pessoas Naturais. Comarca de Santo Amaro – Bahia. (2ª via, junho de 2002).
PEREIRA, Manoel Henrique. Seção Judiciária. Arquivo Público Estadual da Bahia. Classificação – 202; Cx 14; doc 18 – Período 1918.
PEREIRA, Manoel Henrique. Seção Judiciária. Arquivo Público Municipal da Santo Amaro.; Subsérie: Tentativa de homicídio; Cx.04; N° 104; Vol. 18. Data limite (1920 –1927)
REGO, Waldeloir. Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968. 417p
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SANTO AMARO. Edição  comemorativa do bi-centenário. Bahia, 1978. 122p.
VERGER, Pierre. Orixás –  Deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Currupio, 1997. 295p.
VIEIRA, Antônio. O encontro de besouro com o valentão doze homens. Santo Amaro: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Cidade de Santo Amaro da Purificação, 2001. 17p. (Literatura de Cordel).
VIEIRA, Luis Renato. O jogo de capoeira: cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro: Sprint, 1995. 




[1] Professor Associado III, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Ceará. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Filosofia Política, Especialista em Filosofia Política, Mestre e Doutor em Sociologia e Pós-Doutor em Artes Cênicas. Edita a Coleção Diálogos Intempestivos e a Revista Educação em Debate da FACED/UFC.

Nenhum comentário:

Postar um comentário