segunda-feira, 23 de agosto de 2010

MANOEL HENRIQUE PERIERA, VULGO BESOURO MANGANGÁ E O DISCURSO POÉTICO DA MORTE


José Gerardo Vasconcelos[1]
Esse trabalho é parte dos estudos de pós-doutoramento desenvolvidos junto a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia em 2002, sobre o discurso poético constituído em torno do capoeira mais famoso da região do Recôncavo Baiano. Nascido provavelmente em 1895 e falecido em 8 de julho de 1924. Abordaremos aqui algumas versões sobre a morte de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordão de Ouro ou Besouro Mangangá na constituição de um mito popular.
Tem-se a transmutação da morte em vida eterna. Imagem do corpo deslocado da temporalidade. Símbolo de coragem ou quem sabe composição poética de uma força pura da natureza participando de todas as rodas imaginárias da cultura negra. Um ponto de resistência capaz de ressoar no corpus poético do filho querido de ogum ao capoeira moderno que canta a valentia do mestre Besouro gingando em novos campos de teatralidade e, ao mesmo tempo, dançando a malícia de um jogo que reúne as artes do espetáculo apesar do limite despendido pela transitoriedade humana.  A morte poderia encerrar o ciclo biológico da vida.  
Entretanto, toda morte representa um renascimento. Um lugar em que, nas consciências arcaicas, as experiências elementares - segundo MORIN (1970, p. 103) – são das  metamorfoses, das desaparições e das reaparições, das transmutações, toda morte anuncia um renascimento. Nascimento e perecimento participam do mundo, alternâncias de bem e mal, transmutações de signos que derrapam nos interstícios do tempo e clamam pela eternidade. MORIN (1970, p.103) nos lembra que
O conceito cosmofórico primitivo da morte é o da morte-renascimento, para o qual o morto humano, imediatamente a seguir ou mais tarde, renasce num novo vivo, criança ou animal.
É que o homem “não” pode tão imediatamente morrer. Em casos excepcionais, determinados indivíduos continuam muito mais do que vivos. É vida que efetivamente encontra sentido em outro tempo ou em outra comunidade discursiva, que passa a selecionar eventos e acontecimentos que tornam o mundo humano consciente de sua transitoriedade. Desloca-se ao sempre novo recomeçar e integra-se ao divino mundo da imortalidade. Formam-se os mitos com a força suficiente para saltar o tempo. De acordo com ELIADE (1991, p.54),
Um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo individual, cronológico, “histórico” – e o projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma ruptura do Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o tempo sagrado.
É neste lugar sagrado que se pode reverter o limite da humanidade, torná-la simples ou demasiadamente humana. Não é à toa que estudar os mistérios da morte, de acordo com CASSORLA (1991, P. 18),
Por mais que se queira fazer ciência, acaba impelindo o autor para o terreno da poesia. O pesquisador e os pesquisados, com freqüência, são obrigados a utilizar figuras poéticas para poder expressar o indizível ou o inefável.     
O homem quer torna-se o animal de si mesmo, revelar-se o animal que mesmo é; um animal que é capaz de deitar o olhar por sobre o outro e devorá-lo pela pura e simples capacidade de trespassar a cultura pela satisfação da crueldade. Para muito além da “eterna” “bondade” humana, existe um animal ou muitos animais humanos que escapam as organizações binárias e, ao mesmo tempo, lança suas linhas de fuga que se vão articulando a sempre novas linhas de fuga, que são moleculares. Como nos mostra DELEUZE (1996, p. 94): sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa as organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação.
Besouro é um desses animais poéticos que transmuda o tempo de desterro e reencontra em linhas de fuga da temporalidade um outro modo de dizer o seu tempo. Uma zoopoética intercala-se entre tantos pontos que se fazem necessários para compor um corpus estendido para muito além dos nossos limites  temporais.
Esse animal é capaz de prometer. É DERRIDA(2002, p.15) quem nos lembra o início da segunda dissertação da Genealogia da moral de NIETZSCHE (1998, P. 47): criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? E complementa: A natureza ter-se-ia dado como tarefa criar, domesticar, “disciplinar” (beranzüchten) esse animal de promessas. Esse animal que promete a felicidade, a eternidade e a verdade e, como toda eternidade, pode ser vazada pela força que se instaura imiscuída no jogo de promessas na história ou quem sabe no próprio sentido do jogo da vadiação ou da capoeiragem.  
É nesse jogo que Besouro, feito imortalizado, pela força de sua ação, com a arte da malandragem, o filho de querido de Ogum é incapaz de, simplesmente, morrer. Ele necessita ir muito além do inefável. É um corpus enigmático, uma tempestade de força e de resistência; uma sempre nova possibilidade de guerra e de combate que se renova para vazar o seu tempo.
É que Besouro é uma estrela, uma estrela grande, que ilumina todos os tempos e encontra no infinito o céu e a terra. De acordo com AMADO(1973, 126-127), As mulheres dizem que ele está espiando os malfeitos dos homens (barões, condes, viscondes, marqueses) de Santo Amaro. Está vendo todas as injustiças que os marítimos sofrem. Um dia voltará para se vingar.
De nada adiantaria colocar a polícia contra ele. Não importava a quantidade de homens. Todos seriam destruídos pelo rabo-de-arraia, rasteira e cabeçada braba. Em alguns casos, o recurso da surra de facão, ou quem sabe, a navalha no pé poderia ser utilizada no jogo da capoeiragem.  Ele voltará para se vingar. Deve voltar como muitos homens do mar, reivindicando direitos, outras leis e igualdade social.  Essa poética literária que AMADO (1973) entoa como um cântico, uma récita, uma beberagem capaz de embriagar, no silêncio, os mortais que se tornam ávidos e sedentos pela beleza discursiva reencontra a visibilidade da história, encobrindo um enorme campo retraído do invisível. É nesse terreno que CALVINO (1990, p. 21) informa que a poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nasce de um poeta que não nutre qualquer dúvida quanto ao caráter físico do mundo. Besouro cantado, entoado, versejado ou descrito pela literatura; Besouro tomado de empréstimo como um nome dado ao capoeira é também físico.
Mestre Burguês (1986:32) conta que certa vez Besouro estava desempregado e saiu em busca de trabalho. Conseguiu emprego na Colônia Santa Rita. No dia do pagamento, sabia que havia um costume do patrão de chamar só uma vez e, na segunda, dizia que havia “quebrado para São Caetano”. Isso significava dizer que o empregado não receberia. Não havia possibilidade de reclamar. Se o fizesse, era imediatamente espancado como correção pela audácia. Esse costume – imposto pelo patrão – era sinal de força e orgulho. Era comentado nas festas e rodas dos senhores de engenho da região.  Conta mestre Burguês, que:
Besouro no dia do pagamento deixou que o patrão lhe chamasse duas vezes. Todos receberam naquele dia, menos Besouro. Então invadiu a casa do patrão pegou-o no cavanhaque e gritou: Pague o dinheiro de Besouro Cordão de Ouro. Paga ou não paga? E o patrão com as mãos trêmulas  ordenou que lhe pagasse o devido e o mandasse embora. Besouro tomou o dinheiro e andou. 
Narra ainda BURGUÊS (1986: 33) que Besouro foi se empregar na fazenda do Dr. Zeca, o qual tinha um filho genioso que logo se desentendeu com Besouro.
O fazendeiro tinha um amigo que era administrador da Usina Maracangalha de nome Baltazar. Mandaram então Besouro entregar uma carta. Baltazar recebeu a carta, leu, e disse para Besouro esperar pela resposta até o dia seguinte. No outro dia Besouro, quando foi buscar a resposta, viu-se rodeado por uns 40 homens armados. As balas nada fizeram contra ele. Um homem matou-o a traição com uma faca. Só assim é que puderam acabar com Besouro e sua saga de homem valente.
Outra versão dentre tantas apresentadas sobre a morte de Besouro corrobora esta descrita pelo mestre Burguês. REGO (1968:265) descreve um possível desentendimento entre Besouro e Dr. Zeca (Jeca) e, ao mesmo tempo, amplia com a inclusão do filho Memeu, que entrou em desentendimento com Besouro. 
Mandaram então uma carta para Baltazar, pelo próprio Bezouro, pedindo ao administrador que desse fim do Besouro por lá mesmo. Baltazar recebeu a carta, leu, e disse a Besouro que aguardasse a resposta até o dia seguinte. Besouro passou a noite na casa de uma mulher da vida; no outro dia foi buscar a resposta. Quando chegou na porta foi cercado por uns 40 homens, que o iam matar. As balas nada fizeram; um homem o feriu à traição, com uma faca. Foi como o cosseguiram matar.
A linguagem poética de VIEIRA (2001:13) sobre a morte de Besouro refere-se ao castigo aplicado ao filho do dono da usina. Besouro teria feito o jovem Memeu – filho do patrão - montar em um burro brabo, como forma de punição e justiçamento aplicados por Besouro. Isso foi motivo suficiente para o patrão mandar executar Besouro Cordão de Ouro. 
E o rapaz que não tinha/ traquejo com montaria/ Mal montou e foi pro chão/era assim que acontecia/ No burro, mal se montava/ Ela todo se encolhia/ Burro de primeiro salto/ Derrubava e não saía. O rapaz adoeceu/ Seu pai ficou irritado/ Não atirou em Besouro/ pois tinha o corpo fechado/ então tramou sua morte/ Com jagunço contratado/ não demorou, o serviço/ Foi logo executado (VIEIRA 2001:13-14)
Raimundo José das Neves, Mestre Macaco, 36 anos, 28 de capoeira. Iniciou seus estudos de capoeira com Mestre Ferreirinha, na década de 1970. Entretanto, teve que mudar para a Regional - no horário das aulas do mestre Ferreirinha, Mestre Macaco estava na escola. Concluiu o ensino médio e, no momento atual, é um profissional da capoeira, em Santo Amaro da Purificação-BA.
Informou-me Mestre Macaco ao se referir à história da morte de Besouro Cordão de Ouro, sobre uma determinada usina em Maracangalha - zona canavieira – que o proprietário tinha o hábito de deixar de pagar aos trabalhadores, alegando que havia quebrado para São Caetano – padroeiro da Usina.
Ao saber dessa história, Besouro, que gostava de tomar o partido dos desfavorecidos, alistou-se na referida usina. Na segunda semana, quando foi receber o salário- relata Mestre Macaco - com os outros funcionários, o patrão disse que havia quebrado para São Caetano. Mestre Macaco afirmou:
Besouro segurou o patrão pelo cavanhaque, neutralizou os outros capangas e fez com que o salário dele e dos outros fossem pagos. Nesse mesmo dia tinha dado uma surra no filho desse proprietário de terra, próximo a usina de Maracangalha. Ele se desloca para Santo Amaro e quando passa um período ele volta para rever as mulheres de programa que ele conhecera. Ele tinha um chamego daquele lado. Essa mulher foi paga, teve a relação sexual com ele. Nesse caso quebrou os encantos que ele tinha. Foi tudo já armado. Quem pagou isso foi esse proprietário que ele tinha dado uma surra.
Mestre Macaco analisa o conflito que se instaurou em torno da morte de Manoel Henrique muito mais do ponto de vista político, embora inclua a versão do corpo fechado, da faca misteriosa e da mulher que passou a noite com Besouro. Amplia a versão incluindo a personagem que fora contratada pelo usineiro. De acordo com o Mestre, o rapaz contratado era muito mais novo do que ele, talvez nem fosse maior de idade.
Foi preparada uma outra tocaia. Contam que quando ele atravessou a cerca a camisa rasgou-se. Ele falou que não estava no dia dele. Quando ele chegou nas proximidades do bar, foi feita a emboscada e, segundo contam, ele foi perfurado com uma faca preparada para esse tipo de situação, que é a faca de Ticun. Besouro mesmo assim caminhou e foi trazido de Maracangalha - em uma canoa - até Santo Amaro.  Chegando em Santo Amaro, na Santa Casa de Misericórdia não houve muito interesse em atende-lo. Ele tinha muitos inimigos e ele morre no hospital.   
Esse relato aproxima-se ao do mestre João Pequeno, com a diferença de que o discípulo de Pastinha concentra mais sua versão em torno da mandinga quebrada quando Besouro mantve relação sexual no período que deveria obrigações aos orixás. João Pequeno assinala que seu pai era primo de Besouro. Todavia insiste na idéia de que o corpo fechado pode ser quebrado quando esse corpo se encontra sujo pela sexualidade. Pessoa de corpo sujo são as que têm relações sexuais, eles estão despreparados e com o corpo aberto a qualquer luta, e foi aí que aproveitaram do finado Besouro (PEQUENO, 2000: 17).
O Mestre insiste na versão do corpo sujo proporcionado pela impureza da atividade sexual. Relata o acontecimento que antecede a morte de Besouro:
Ele dormiu na casa de uma mulher no outro dia quando ele vinha para a casa passando debaixo de uma cerca de arame, o arame arranhou nas costas dele e ele chamando disse: “estou mal, se qualquer pessoa me atacar hoje estou perdido”. E foi nesse dia que furaram ele em uma briga, que durou o dia inteiro. Então, o capoeirista que usa essas rezas não pode ter relações sexuais senão perde o efeito (PEQUENO, 2000: 17).
Mestre Dimas relata o fato a partir de histórias que ouviu e de pesquisa realizada por ele na região. Garante que Besouro estava bebendo em uma venda, não sabe exatamente onde. Tinha acabado de retornar de alguma festa ou da casa de alguma mulher. Isso mantém a versão do corpo aberto pela sexualidade. Nas palavras do Mestre, ele era justiceiro e os senhores de engenho não gostavam dele. Um misto trafega entre um campo político e outro que se expressa na religiosidade e nas obrigações com os santos protetores.
Ninguém podia disputar na mão com ele – quem era doido de sair na mão com Besouro ou na faca. Não tinha jeito. E ele vinha de uma tradição de jogar com a navalha do pé. Ele tinha a sina dele – a mandinga – que não poderia ter relações sexuais em determinados dias. Tinha o dia certo.
Foi então que apareceu no local um garoto que estava contratado para atacar Besouro. Essa mesma versão aparece no discurso do Mestre Macaco. 
Alguém deu a faca de Ticum. O garoto estava preparado para mata-lo. Brincou com o garoto que, inesperadamente, sacou da faca e furou Besouro. Cortado caiu, gofando, bebendo o próprio sangue. O ticum além de cortar, solta uma tinta que infecciona. O Garoto furou e logo fugiu. Ele que estava com o corpo aberto, tinha acabado de ter relações sexuais com a tal mulher.
Mestre Dimas argumenta que Besouro foi levado para o hospital. Entretanto, embora fosse um negro muito forte, não resistiu à distância e à falta de socorro da Santa Casa de Misericórdia. 
Da Usina de Maracangalha até Santo Amaro é muito longe. Ele ainda resistiu. Entretanto sua fama era muito grande, os proprietários automaticamente foram ao hospital e dificultaram ou impediram o socorro. Se fosse prestado socorro de forma adequado – ele era muito forte – teria escapado. Foi perdendo muito sangue e veio a falecer.
Mestre Atenilo, em entrevista concedida ao Mestre Itapoã (Raimundo César Alves de Almeida ), ilustra a possibilidade de criação. Nesse relato já transmitido por outros capoeiristas, Besouro morreu em Cumbaca. Morreu com uma facada. Todas as versões são categóricas em afirmar que foi facada. Nesse aspecto, encontro unanimidade, o que se encaixa perfeitamente com o documento expedido pela Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, no relato organizado por ALVES (1988: 48), o entrevistado – Atenilo – diz que Besouro, mesmo furado, não morria. Ele era um além-humano. Não poderia morrer de qualquer jeito. Uma morte simples não seria tolerada. Caberá ao mito – no mínimo – uma morte espetacular.  
Ele não morria, porque ele depois de furado, dizem, ele meteu a mão na faca e cortou os intestinos, ele cortando e comia. E ele vivo, até quando levaram ele pró hospitá, quando chegou no hospitá o médico disse: se ele não tivesse cortado os intestinos...
Mestre Itapoã pergunta novamente, como se quisesse se certificar do que acabara de ouvir: Ele comeu os intestinos, que história é essa?- Mestre Atenilo responde: Ele cortava rapaz, era maluco, cortava um pedaço e botava na boca. Quando chegou no hospitá não tinha mais ar, o ar já tinha saído e ele morreu (...)Até ele não queria escapar.
Sr. Danilo do Acupe, 67 anos, assegurou, em entrevista concedida em 16.06.2002, que Besouro tinha o corpo fechado. Mas o afilhado dele encontrou o ponto fraco. Pegou o Mestre no dia fraco; no dia em que ele estava desprotegido pela atividade sexual. Não tem mandingueiro que resista. Além disso, Cordão de Ouro foi furado com uma faca de ticum, que é a árvore dos mistérios.
Dia de sexta-feira o homem não pode ter relação com mulher. Besouro caiu porque o afilhado o ajeitou, pegou o dia fraco dele e ajeitou ele com uma faca de que? De Ticun. Não tem mandingueiro que resita. Só basta bicar, só basta tocar. Aquele que tem um espinho, que dá aquela frutinha.
Mesmo tendo passado a noite com uma mulher não haveria problema. Sr. Danilo é categórico em afirmar que só pela mulher Besouro não seria derrubado. Besouro é vítima da inocência. A potência transmudada em maldade. Besouro morre no da 8 de julho de 1924. De acordo com o calendário de 1924, o dia 8 de julho é uma terça-feira, que segundo VERGER (1997) é dia dedicado a ogum. Coincidência ou não a possibilidade de articulação entre sexualidade, mandinga, corpo fechado preenchem de possibilidades a linguagem poética.
Foi o menino – afilhado – que estava com maldade com ele. O que contam é que Besouro foi traído pelo afilhado. Isso ocorreu na toga do saveiro. O menino ficou esperando. Quando ele voou já era tarde. O punhal já tinha cravado nele. Caiu no próprio barco. Quando o cara botou nele, já estava preparado. Ali tem um veneno. O ticum solta um veneno. Quando botou nele acabou o homem
A irmã de Besouro– Dona Dormelina Pereira dos Anjos, Dona Adó, em entrevista gravada em Santo Amaro no dia 18.06.2002, garantiu que Besouro estava dormindo. Não entrou em detalhes sobre os motivos de sua morte. Provavelmente por causa de uma mulher. Ele estava dormindo. Mataram ele dormindo. Ninguém sabe quem matou. Morreu em Maracangalha. Contestou a possibilidade de Besouro estar em alguma festa ou bodega.  Foi uma morte construída pela força da traição.  Ao mesmo tempo integrou à linguagem poética dois arquétipos importantes da mitologia: o sono e a morte, que são irmãos gêmeos; filhos da noite, que habitam para muito além dos lugares que o Sol pode iluminar. São lugares onde os galos nunca anunciam a chegada da aurora, chorando o orvalho pela decrepitude de seu amado Titão. De acordo com MÉNARD (1991, p. 119),
(...) o falecimento, filho da noite, habita perto do sono, seu irmão. Este, amigo dos mortais, passeia calmamente no meio deles, na terra; mas o falecimento não conhece piedade e tem um coração de bronze. Nunca deixa o infeliz de que se apodera, e inspira horror aos próprios deuses imortais.
Besouro põe em conflito os dois irmãos. O sono que passeava livremente pela vida e rompeia o fio da existência com a traição e crueldade humana; do enfraquecimento da mandinga, movido pela força da sexualidade e, ao mesmo tempo, o que se torna indispensável - proteção ao mito. Nada poderia abatê-lo. Nem a força da mandinga, impureza, o ticum ou interferências políticas. Na realidade, é como se dissesse: só poderiam matar Besouro dormindo. Não haveria outra forma. O sono impediria a força do mito; imobilizaria a cabeçada, a navalha no pé, o rabo-de-arraia, a rasteira ou a surra de facão. Não haveria força humana disponível para detê-lo. Besouro só poderia morrer à traição.
Para AMADO (1973, p. 127): cortaram  seu corpo todo. Foi preciso catar os pedaços para o enterro. Mas, como poderia ser cortado à faca o ilustre filho de Ogun? Ele não poderia morrer de ferro. Temos ainda uma retaliação poética, uma mutilação que lembra o menino Dioniso. O ritual da criança cortada em postas pelos titãs e cozida no vinho, formando uma macabra beberagem e, ainda assim, escapou o divino coração do deus que renasceu na coxa de Júpiter. Pela força da paixão representada pelo coração, o deus-menino sobreviveu embriagando a todos em todos os lugares. Besouro trafega entre a vida e a morte como um deus que sempre viverá, porquanto é imortal.  
Besouro é Manoel Henrique Pereira - vaqueiro, mulato escuro, natural de Urupy, residente na usina de Maracangalha; dava entrada na Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro da Purificação – Bahia, como um ferimento perfuro-inciso do abdômen. Veio a falecer no dia 8 de julho de 1924 às 7 horas da noite, conforme registro na folha 42v. do livro n° 3, linha 16, leito 418, de entrada e saída de doentes. O referido documento consta nos autos do processo (PEREIRA 1920 –1927: 21) movido por Caetano José Diogo contra Manoel Henrique.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Raimundo César Alves. (Mestre Itapoã).. Mestre Atenilo. O “Relâmpago” da capoeira regional. Salvador: UFBA, 1988. 61p.
AMADO, Jorge. Mar morto. São Paulo: Martins, 1973.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo : Companhia das Letras, 1990. 142p.
CASSORLA, Roosevelt M.S. Como lidamos como o morrer – reflexões suscitadas no apresentar este livro. In. Da morte – estudos brasileiros. Cassorla, R.M.S. (organizador). Campinas : Papirus, 1991. pp 17-23.
DELEUZE, Giles. GUATTARI.  Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 120 p.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 92p.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos – ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 178p. 
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana. São Paulo: Opus, 1991.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Portugal: publicações Europa-América, 1970. 
NIETZSCHE, Friedrich. Para a genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____.  Além do Bem e do Mal – prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_____. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
PEQUENO, João. Uma vida de capoeira. Salvador: [ s.e.], 2000. 48p.
PEREIRA, Caetano Cícero. Certidão de óbito. Cartório de Registros Civis de Pessoas Naturais. Comarca de Santo Amaro – Bahia. (2ª via, junho de 2002).
PEREIRA, Manoel Henrique. Seção Judiciária. Arquivo Público Estadual da Bahia. Classificação – 202; Cx 14; doc 18 – Período 1918.
PEREIRA, Manoel Henrique. Seção Judiciária. Arquivo Público Municipal da Santo Amaro.; Subsérie: Tentativa de homicídio; Cx.04; N° 104; Vol. 18. Data limite (1920 –1927)
REGO, Waldeloir. Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968. 417p
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SANTO AMARO. Edição  comemorativa do bi-centenário. Bahia, 1978. 122p.
VERGER, Pierre. Orixás –  Deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Currupio, 1997. 295p.
VIEIRA, Antônio. O encontro de besouro com o valentão doze homens. Santo Amaro: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Cidade de Santo Amaro da Purificação, 2001. 17p. (Literatura de Cordel).
VIEIRA, Luis Renato. O jogo de capoeira: cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro: Sprint, 1995. 




[1] Professor Associado III, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Ceará. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Filosofia Política, Especialista em Filosofia Política, Mestre e Doutor em Sociologia e Pós-Doutor em Artes Cênicas. Edita a Coleção Diálogos Intempestivos e a Revista Educação em Debate da FACED/UFC.

sábado, 21 de agosto de 2010

A DANÇA DO CONCEITO OU O CONCEITO DA DANÇA: PAIXÃO, EMBRIAGUEZ E DESMESURA NO TERRITÓRIO DO PRAZER





José Gerardo Vasconcelos[2]




O avesso da vida urbana. A cidade entrega-se ao descanso noturno enquanto muitos se lançam aos territórios de prazer. Lugares que se movimentam em seus percalços de civilidade. Lugares que guardam muitos outros lugares em territórios cindidos pela movimentação do acaso. Lugares que se vão formando nas conexões vibrantes que se deslocam entre tantos lugares. Lugares de temporalidade. Um tempo que se ergue nos escombros conduzidos pelo tédio. Uma frincha de tempestade pousa em nosso semblante para nos conduzir, inebriados e trôpegos, aos territórios de prazer.
Em algum prostíbulo da região central da cidade de Fortaleza, soa com intensidade o pulsar da música reverberando em nosso coração. Corredor estreito e seguranças plantados à porta de entrada de onde se podem avistar luzes díspares ao fundo. Ingressar nesse território desconhecido faz lembrar uma travessia assaz perigosa. Ao final do corredor, as luzes se misturam e circulam em vários feixes que embriagam o olhar. Os ouvidos são alertados pelo sabor da música. Corpos femininos se deslocando na distorção de uma intensa sonoridade que faz acelerar nossos sentidos e, ao mesmo tempo, invadem nossas entranhas com a paixão e a desmesura. É essa mesma paixão que inquieta Foucault (1986, p.18), quando põe em questão o método científico, destacando a paixão dos seus pares, suas discussões fanáticas e sempre retomadas, da necessidade de suprir a paixão.
O sabor feminino passeia pelo salão e exibe seus corpos e suas curvas sinuosas pelos becos que se vão formando entre as mesas distribuídas no referido espaço. Ao final do corredor estreito da entrada, seguindo um traçado retilíneo, desemboca-se no espaço do salão para que os olhos vislumbrem uma variedade de informações imagéticas. À esquerda, pode-se avistar um bar e o posto do caixa e em cima do balcão um operador de som. Entre o bar e um palco de exibição, um pequeno camarim e ao fundo do salão, antes de chegar a uma placa com o nome iluminado – MOTEL -, pode-se perceber, em meio a tantos outros, um jovem sentado em intensa solidão, com os braços recostados sobre a mesa. O que chama a atenção – além do volume corporal do referido indivíduo – é o tédio que amarga seu olhar. É o tédio que, segundo Leopardi (1996, p. 439), jamais se fundamenta no falso. O suor escorrendo pela testa e embebendo de calor a roupa vermelha já completamente encharcada. Como se procurasse algo, alguém ou alguma coisa. Como se tentasse uma passagem pela vida. Um lugar que fizesse sentido no mais vazio dos mundos que se formava no seu entorno. 
No palco de dois metros de diâmetro, avista-se a movimentação das dançarinas que se podem contratar dentre as várias mulheres que se apresentam no interior do recinto. O espetáculo é combinado previamente. O investimento pode variar de 10,00 a 50,00 reais. Duas músicas é o tempo de exibição. A primeira é apresentada no palco, que inclui um espelho ao fundo e um longo cano no centro. Percebe-se uma montagem do corpo para avivar a imaginação masculina. Fantasias diversas podem cobrir o corpo que logo será apresentado num misto de inocência e sensualidade. As tais fantasias podem ser de tigreza, colegial, enfermeira, policial ou simplesmente uma pequena saia e um minúsculo pano para guardar as bundas e os seios fartos das dançarinas.
Para SUQUET (2008, p.533), o bailarino sempre controla o centro de gravidade de seu movimento, daí a impressão de um domínio. No caso em questão, o palco é centralizado pelo cano de 2 metros de altura e 20 cm de diâmetro. Posições sensuais de agachamento participam o tempo inteiro do espetáculo. Encostar-se ao espelho e descer até o chão. Descer e subir no cano e, em alguns casos, de cabeça para baixo. Toda essa movimentação tem por objetivo retirar a fantasia cuidadosamente escolhida. Desmontar um mundo imaginário de uma personagem que desaba de sua forma e apresenta a nudez de seu corpo. Resta apenas uma pequena calcinha. Muitas vezes amarrada dos dois lados com laços que são facilmente desfeitos. A calcinha já desamarrada é puxada de um lado para outro passando entre o ânus e a vulva completamente raspada. Uma vulva que assiste aos mundos de olhares de desejo e emoção.
Em seguida, a bailarina desce do palco e invade a platéia se deslocando para a mesa dos investidores do espetáculo. Uma nova música. Desta vez, mais potente, preenche loucamente nossos ouvidos e um novo bailado se vai formando entre os olhos atentos de todos e, ao mesmo tempo, partilhado “exclusivamente” pelos que contrataram o show.
Ao longo do salão, várias mesas foram distribuídas. Pessoas sentadas no entorno das referidas mesas. Homens e mulheres que se misturam aos olhos sempre atentos dos seguranças. Mulheres nuas exibem suas formas arredondadas e passeiam pelo território do prazer. Homens sentados. Olhares perdidos de uns e a total atenção de outros que buscam – ao que parece – algum sentido para a sua própria existência. É como se não ouvissem a música que invade todo ambiente. É como se ensurdecessem ao clamor do bailado e cheiro feminino que embriagava de prazer a humanidade reticente e ávida de (des)contentamento.
As dançarinas, que eventualmente podem dividir o prazer sexual com os clientes que estão dispostos a pagar a modesta quantia de 30,00 reais em média, apresentam a sua insatisfação em relação ao espaço preparado para os momentos calorosos de amor. Dizem que as condições dos quartos não estão devidamente apropriadas para tal realização. Na realidade, um pequeno cômodo, com uma cama colada à parede fria e que preenche quase todo espaço desse território, deixando apenas um minúsculo corredor delimitado por outra parede. Um minúsculo banheiro como cheiro de pinho que penetra por todo recinto e invade nossas narinas. Um lençol desbotado pelo tempo, certamente testemunha de acolhimento de muitas noites de amor, com um leve cheiro de mofo, reveste a cama e embala os corpos dos amantes que, como dançarinos, inventam novo movimento como uma réplica do bailado que fora apresentado momentos antes para o público ávido de prazer. Circunspetos em silenciosos soslaios. Movidos pela força dionisíaca do espetáculo primal e, ao mesmo tempo, entediados pelo peso da existência que devem carregar até o fim de seus dias.  
Todavia, se o tédio pode ser entendido como ausência de sentimentalidade, passagem vazia pelo tempo ou simplesmente experiência do nada, a arte seria simplesmente a fuga do tédio. A motivação que permite a nós humanos suportar um mundo que dilacera nossos projetos e invade nossos sonhos. Nesse caso, como viver sem a arte e, particularmente, sem a música? Quão intensa seria a vida se a música nunca cessasse de pulsar e, evidentemente, se conectasse ininterruptamente aos nossos sentidos. Mas a música cessa. A arte cessa. E, nesse caso, poder-se-ia indagar pelo sentido da vida nos intervalos intermitentes proporcionados pela ausência da música e das artes. Como viver sem a música se ela nos faz pertencer ao mundo – ao âmago do mundo?
Eis que nos vemos diante do desafio. Viver sem o impulso necessário capaz de nos conectar ao coração do mundo sem deixar de ser senhor de si mesmo. O individuum torna-se divisível. Torna-se dividuum. A paixão mobilizadora e condutora de nossos segredos derrama seu cobiçado e inaudito distanciamento de si, dividindo o ser humano entre a paixão de si e a guerra ou tormenta de si. É que as necessidades de golpear o mundo e atingir seu coração conspiram em prol da desmesura do animal humano. É essa ação desmesurada de intempestiva força que nos fere, produz fissuras em nossas certezas e faz colidir nossos percalços vorazes, nossas derrapagens sagradas com o sentido mais acurado de nosso ocaso limítrofe. Ao erguer nossas pontes e nossos tentáculos para socorrer os últimos desnaturalizadores de nossas vidas, forma-se uma teia no submundo da nossa frágil racionalidade.
Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seu gesto fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte (NIETZSCHE, 1998, p. 31).
Tornar-se obra de arte. Eis que o desafio faz acordar a humanidade com seus mais sinceros e secretos desejos. Eles se escondem em fluxos desmesurados de muitos instantes intermitentes que não se comprazem pelo tédio, mas aceleram a vontade de potência, invadindo nossa vida e fazendo saltar do peito a ternura que se esconde na força do êxtase dionisíaco. É que até os deuses podem dançar. A sincronia ritmada pelo compasso da dança nos leva ao âmago da vida e ao coração do mundo.
É seguindo essa trilha, tortuosa pela dissonância de um dançarino embriagado pelo complexo fluxo de temporalidade, entre passos e compassos, entre movimentos desarruamados ou produzidos nas entranhas da existência, que se vai formando o compasso de um corpo que dança, atraindo muitos olhos que admiram e miram o sexo de uma ninfa produzida pela força da juventude e firmeza de suas formas.
A embriaguez circula todo o espaço. Invade nossos poros. Embriaguez esta que está muito além da quantidade de álcool ingerida pelos partícipes da noite.  É o móvel que desloca nossos sentidos para reencontrar o centro do mundo e revolver as certezas, pelo encanto ou pelo escárnio que paira e/ou sobrevoa o recinto. Para Nietzsche, o dionisíaco possibilita uma analogia com a Embriaguez.
Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da embriaguez. (Nietzsche, 1998, p.30).
É que a embriaguez participa da vida humana qual um pedaço de existência que fora devorado e mutilado como o deus do vinho. O menino deus retalhado pelos titãs reencontra na coxa de Zeus o arcabouço necessário de sua existência. Livre como um dançarino que sobrevoa o mundo, deslocando seus pedaços para muito além de seus corpos que se conectam entre si.
Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação como seu filho perdido, o homem.
Dionísio, ao contrário do impulso apolíneo que encontra seu lugar na medida e longe do excessivo, é desmesura e intensidade. É que a razão necessita de paixão. Mesmo como divindade ética e, ao mesmo tempo, como retenção do princípio de individuação, Apolo não pode sobreviver sem a força do impulso dionisíaco. O lugar da desmesura torna-se fundamentalmente necessário ao ser humano.
Apolo, como divindade ética, exige dos seus a medida e, para poder observá-la, o autoconhecimento. E assim corre, ao lado na necessidade estética da beleza, a exigência do “conhece-te a ti mesmo” e “nada em demasia”, ao passo que a auto-exaltação e o desmedido eram considerados como demônios propriamente hostis da esfera não-apolínea, portanto como propriedades da época pré-apolínea, da era dos Titãs e do mundo extra-apolíneo, ou seja, do mundo dos bárbaros (Nietzsche, 1998, p. 40-41).
É que o êxtase dionisíaco invade nossos poros, aniquilando as barreiras e sansões da impostura humana. Tais sanções visam a uniformidade do ser humano unificando em torno de princípios éticos que na realidade são perfurados pelo sabor da passionalidade que alimenta a vida humana. Uma nova estética da existência vai se formando e arrebatando a desmesurada e a fragmentada estética da existência. Gera nesse descompassado espetáculo da vida como que uma letárgica sinopse de um enlevado compasso que se move em torno de um agora pungente. Rompem-se as dores do tempo. Ficam mudas as seqüelas que deformam nosso sentimento de culpa. O esquecimento é conclamado para invadir nossas entranhas e acelerar nosso coração.
O êxtase do estado dionisíco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados (Nietzsche, 1998, p. 55).
Ora, se o êxtase dionisíaco pode levar ao esquecimento das dores do passado e, ao mesmo tempo, escapar do tédio, da letargia e das sanções do cotidiano, há que se pensar que a necessidade de tal êxtase é fundamental para manter vivo o ser humano que não sobreviveria se isso lhe fosse negado. O problema consiste em canalizar o esforço de conexão com as pulsões vitais inerentes à vida humana e as normas desfechadas contra o ser humano pela cultura. È nesse território que o elemento dionisíaco se faz pulsar entre os corpos que se movimentam na dança, na música e no prazer sexual.
A dança potencializa-se na flexibilidade e exuberância dos movimentos que nada seriam sem a presença da música. Segundo NIETZSCHE (1998, p.100) ela proporciona o núcleo mais íntimo, que precede toda configuração, ou seja, o coração das coisas. A força dos movimentos de uma dançarina – isso inclui as dançarinas nos territórios de prazer – objetiva, dentre outras coisas, convencer os múltiplos olhares dos espectadores da eterna existência do prazer. Entretanto, não consegue se desvencilhar da presença do ocaso. Tudo se esvai na eterna rotatividade do tempo. O mais sólido ou o mais compacto se desmancha. A vida torna-se fugidia e a eternidade do êxtase se desfaz na plenitude de sua contingência. O legado da incompletude humana torna-se um sempre e novo estado transitório que dança com as surpresas do acaso. Para NIETZSCHE (1998, p. 101),
...somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo aniquilamento do indivíduo. Pois só nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para nós o eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão a vontade em sua onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a vida eterna para além de toda aparência e apesar de todo o aniquilamento.
Uma ultrapassagem de si. Aquilo que nos torna senhor de si, inclusive das próprias paixões. È que a passionalidade humana sempre viveu em estado de guerra. Todos os antigos juízos morais, segundo Nietzsche (1976, p. 33), estão de acordo em um ponto: é preciso destruir as paixões. É nesse terreno que a igreja combate as paixões – segundo Nietzsche (1976, p. 33-34) – através do método de extirpação radical; seu sistema, seu tratamento, é a castração.
Todavia, a extirpação da paixão é a destruição da vida. Atacar a raiz da paixão segundo Nietzsche (1976, p.34) é atacar a raiz da vida. Não se pode sequer imaginar o ser humano destituído de paixão. A tentativa desesperada de uma razão doente e miserável para conter a força da paixão, apesar de todos os postulados que objetivam o controle do ser humano, não se torna realidade.
Em seu livro Para além do bem e do mal, Nietzsche (1982, p. 47-48) lança um desafio.
Admitindo que nada seja “dado” como real a não ser nosso mundo dos desejos e paixões, que não possamos descer ou subir a nenhuma realidade que não seja a de nossos impulsos – pois pensar é apenas uma inter-relação desses impulsos: não será permitido experimentar e perguntar se aquele dado não chega para se compreender também, por analogia, o chamado mundo mecanicista... Admitindo enfim que se consiga explicar toda a nossa vida instintiva como o desenvolvimento e ramificação de uma só forma fundamental da vontade – da vontade de poder.
Isso nos movimentaria pela força da vontade de potência. Marcaria nosso corpo com o selo de nossa própria vontade. Com todos os riscos capazes de nos tornar a mais viva das criaturas sob a terra.
...admitindo que se possa explicar todas as funções orgânicas por esta vontade de poder e se encontre nela também a solução do problema da fecundação e alimentação – que é só um problema – ter-se-ia, assim, adquirido o direito de designar toda a força atuante, inequivocamente, como: vontade de poder. O mundo visto por dentro, definido e determinado pelo seu caráter inteligível, seria, precisamente, vontade de poder e nada mais. (NIETZSCHE, 1982, p. 48-49).  
Esse sagrado direito de dizer sim. De ir muito além do fardo que nos foi dado pela existência, seguindo, pela inocência, um sutil deslocamento para a vida humana. Que nos faz caminhar quando podemos correr. Que nos faz voar com a leveza da incompletude sem que a vida ao menos nos empurre por sobre um abismo. É que a paixão capaz de rachar o ser humano na constante tensão de nossa vontade nos bafeja com o solícito e implacável golpe da existência.
Entretanto, posso ir mais longe. Voar mais rápido. Correr pelo mundo. Aplainar pelo meu próprio desterro pela intensidade da vontade de potência, pela força da embriaguez dionisíaca e pelo calor da vida humana. Poder-se-ia conclamar nossos desejos para observar o bailado de uma dançarina que, deslocada de seu centro, movimenta suas formas para muito além da nossa medida. É que segundo Nietzsche (2007, p. 67)...
Agora, estou leve; agora vôo; agora, vejo-me debaixo de mim mesmo; agora um deus dança dentro de mim.
Assim falou Zaraturstra.

BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1986. pp. 15-37.
LEOPARDI, G. T. F. Diálogo de Plotino e Porfírio. In. Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, 1996. 437-448
NIETZSCHE, F. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____. O Crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelo. São Paulo, HEMUS, 1976.
_____. Para além do bem e do mal. Lisboa, Guimarães Editora, 1982.
_____. Assim falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche – biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
SUQUET, Annie. O Corpo dançante: um laboratório da percepção. In. História do Corpo – as mutações do olhar – o século XX. Direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 509-540.




[1] Conferência apresentada no IV Seminário de Arte e Educação – Círculos de Cultura de Paulo Freire organizado pelo grupo Cordão do Caroá nos dias 23 a 28 de Setembro de 2008, na universidade Federal do Ceará.
[2]Professor Associado III, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Ceará. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Filosofia Política, Especialista em Filosofia Política, Mestre e Doutor em Sociologia e Pós-Doutor em Artes Cênicas. Edita a Coleção  Diálogos Intempestivos e a Revista Educação em Debate da FACED/UFC.



A DANÇA DO BÊBADO: EMBRIAGUEZ E TEATRALIDADE NA ARTE DA CAPOEIRAGEM



José Gerardo Vasconcelos[1]
Eu acreditaria somente em um deus que soubesse dançar.
(Nietzsche)

1 INTRODUÇÃO
Arte da esquiva. Possibilidade de ataque desfeito e refeito pela circularidade de novo movimento que encontra o tempo correto para ser encaixado no ventre do adversário. Todavia, o capoeira ausente da piedade cristã, em frações de segundos, muda o desfecho do movimento. Ataca, demonstra sua habilidade e resolve não acertar. Sabe que pode bater e não faz porque não quer. A simulação e teatralização da luta é parte de uma dança. Um jogo gingado entoado pelo canto e pelo coro animado. Um jogo que dança na malícia da roda. É o entusiasmo e o êxtase do deus do teatro que no contexto da capoeiragem é capaz de dançar. É Dioniso quem comanda a roda e o cenário de uma embriaguez vigilante e atenta aos mínimos movimentos e intenções do outro.
É com o pé que se bate, não é com a mão. É a possibilidade de descansar na bananeira em plena luta que se desenrola na trama constituidora da capoeiragem. O molejo do gingado baila com a sonoridade dos berimbaus. Astuta na possibilidade de cair e integrar-se aos pontos descobertos de um outro dançarino que joga na esquiva e no ataque. É dança na roda. A dança que lança armada, esquiva na cocorinha e invade a guarda do outro com o martelo de dentro devolvido pelo rabo de arraia que na esquiva retorna mais veloz com a rasteira abençoada. Dobrada com mobilidade de um Au aplica a vingativa - Quem nunca caiu não é capoeira.
O cenário marcado pela alegria de uma embriagante paixão. Imiscuída na preparação de articulações poéticas que entoam o canto da tradição afro-descendente. Revisitando outros cenários e outras rodas com os feitos dos heróis da vadiação. É provável que essa mnemônica poética explique a arte de criar movimentos bailados no cenário da brincadeira e deslocados pela eficiência da potência que se lança contra o outro. É que a capoeira além, de ser tudo que a boca come, conforme diria mestre Vicente Ferreira Pastinha apud Sodré (1999, p. 16), é, ao mesmo tempo, maldade. É o que nos diria mestre Bimba. De conformidade com os estudos de Sodré (1999, p.16):
Apesar da aparente incongruência destas definições elas não conflituam. Complementam-se e refletem diferentes postulados do negro brasileiro diante dos vários problemas de sua existência. Para mestre Pastinha, querido pela sua personalidade cativante, dignidade e grande saber, capoeira era tudo o que a vida lhe oferecia, aceitando filosoficamente o bom e o ruim, inclusive sua condição humilde, cegueira e velhice como dádivas e castigos divinos merecidos. Para mestre Bimba, respeitado pelo seu carisma, criatividade e estatura na preservação de uma das mais expressivas manifestações da cultura afro-brasileira, capoeira era um estado de vigília constante, uma arte que lhe permitia enxergar os perigos e injustiças da vida, ao mesmo tempo em que lhe oferecia uma estratégia de como lidar com eles.
A complexidade da capoeira é marcada pela desconstrução de limites da corporeidade traduzidos na constante vigilância do mundo. É um sentimento que ultrapassa a racionalidade e a militarização de “esporte de combate”. É beleza embriagada e cantada. Signo móvel que desloca sentidos inesperados e não oficializados pela linguagem. É a possibilidade de buscar saídas em lugares inusitados. Transformar a esquiva em ataque.A dor em sorriso. Desmanchar a inocência transfigurada em pontos de desterro. É acima de tudo a vida que permanece gingada sem os ocasos da temporalidade.
Um turbilhão de acontecimentos canta com a capoeira. Todavia, a ambigüidade disfarçada na máscara ritual encobre ou, em outros casos, revela as possíveis disputas na formação discursiva da capoeira. Dois possíveis elementos conceituais trespassam a ginga da capoeira na formação da Capoeira de Angola e da Capoeira Regional. É o discurso da eficiência e da vadiação. Na realidade essa polêmica revela uma suposta segmentaridade assinalada por Deleuze.
Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estados que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente (Deleuze, 1996, p.83).
E, de alguma forma, a tensão parece encontrar outro lugar em Castoriadis, nas Encruzilhadas do labirinto V, entre a dimensão poiética e lógica que participam da vida humana. Essa dupla dimensão recompõe armadilhas postas na vida cotidiana. A possibilidade de escapar às adversidades da vida é a grande marca do homem. Viver é correr riscos e reinventar constantemente o inusitado, caótico potencializado da arte da criação.  Para Castoriadis,
A dimensão poiética do ser humano, criadora, portanto, irredutível, inexplicável, parece deixar de lado toda dimensão lógica. Ora, não é nem um pouco assim. Uma das primeiras constatações que fazemos quando começamos a refletir é que há uma dimensão – que corretamente é chamada “lógica”(...). Eis por que digo que estas duas dimensões, conídica e poiética, são sempre densas, como se diz em topologia: tão perto quanto possível de um elemento de uma, encontraremos um elemento de outra. Mesmo na loucura, é evidente.
Entretanto, as segmentaridades deleuzianas podem ser trespassadas por fluxos e linhas de fuga. De um lado a racionalidade não consegue abarcar o mundo e de outro as classificações são insuficientes e, nesse caso, sempre vaza algo ou alguma coisa. Conforme Deleuze (1996, p. 94), Um fluxo molecular escapava, minúsculo no começo, depois aumentando sem deixar de ser inassimilável.
A disputa discursiva imiscuída nas rodas e cantigas de capoeira não impedem o seu bailado, apesar da visibilidade de sua constituição. Um canto de capoeira de Mestre Tony Vargas, do Rio de Janeiro, apud Falcão (1996, p. 34-35), revela a tensão que se constitui na binária ordem da capoeiragem.
(...)Não se vê mais negativa
onde é que anda a rasteira
Nunca mais vi meia-lua
Inventaram a tal ponteira.
Não se vê um cabra leve
Brincando na bananeira
Isso me deixa confuso
Será que isso aí é capoeira(...)
(...)Todo mundo de cara amarrada
Oh meu deus todo mundo querendo brigar
Só na boca de espera
Mas sem saber como esperar
A capoeira era do povo
Foi parar em outro lugar
Isso pode ser mais acirrado quando a capoeira passa a ser reconhecida pela Confederação Brasileira de Pugilismo – CBP, em 1973. Segundo Falcão,
O regulamento trata a capoeira de forma essencialmente desportivizada com regras e procedimentos típicos dos esportes do ramo pugilístico. Designa a roda  de “área de combate e deixa transparecer a idéia de que a capoeira não passa de um combate corporal ( Falcão, 1996, p. 39).
É nesse sentido que a poética da capoeira deve marcar a possibilidade de recomposição do discurso da “vadiação” a partir de necessidades postas pelo cotidiano ou pela formação de novos acontecimentos. É a brincadeira que constitui a capoeira para além do discurso da eficiência. É nesse terreno que a embriaguez sobrevive. Esse é o elemento constituidor da capoeiragem. Para além da disputa acirrada (Angola x Regional) encontra-se na embriaguez a linha de fuga que trespassa a segmentaridade binária posta pelo discurso da eficiência.
A capoeira possibilita a criação. É, na realidade, a própria criação de movimentos entrelaçados ao canto, dança e teatro. De acordo com Rego (1968, p. 35),
Dos toque e golpes primeiros, de uso de todos os capoeiras, uma boa parte foi esquecida, permanecendo uma pequeníssima e uma outra desapareceu (...). Como exemplo disso  posso citar o toque do berimbau chamado aviso, ainda do conhecimento do capoeira Canjiquinha. Segundo corre na transmissão oral dos antigos capoeiristas, era comum ficar um tocador de berimbau, num oiteiro, onde se divisava uma área enorme, com a finalidade de vigiar a presença do senhor de engenho, capataz ou capitão do mato, no encalço deles. Uma vez notada a aproximação desses inimigos, era dado um aviso, no berimbau, através de um toque especial.
O mesmo ocorria com o toque da cavalaria. Esse toque era utilizado, segundo Rego (1968, 35), para denunciar a presença do esquadrão da cavalaria que atuava contra o candomblé e a capoeira baiana.
No caso da embriaguez, temos relatos de forte ligação que vai além da embriaguez estética ou teatralizada no êxtase dionisíaco. Não havendo academias ou lugares fechados que abrigassem a prática do jogo de capoeira, tem-se conhecimento dessa prática em lugares que se aproximassem de quitandas ou vendas de cachaça.
Aí , aos domingos, feriados e dias santos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras  mais famosos, a tagarelarem, beberem e jogarem capoeira. Contou-me Mestre Bimba, que a cachaça era a animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos donos das vendas, através de toque especial do berimbau, que eles já conheciam (Rego, 1968, p. 36).
É que o símbolo participa da vida. Passa a fazer parte de necessidades espirituais do homem, correspondendo à possibilidade de reinventar ou (re)visitar a humanidade anteriormente constituída. De acordo com Eliade,
O símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camuflá-la, mutilá-la, degradá-la, mas que jamais poderemos extirpá-la (...). Cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História ( Eliade, 1996, p. 7-9).
É nesses termos que se poderia pensar a constituição do discurso poético do mito. A embriaguez dionisíaca resvala no apolíneo como partícipes da tragédia grega. Elementos tão diferenciados convivem pela harmonia de Apolo ou pelo Êxtase Entusiástico do deus do vinho.
   
2 APOLO E DIONISO PARTICIPAM NO CENÁRIO TRÁGICO E VIVIFICAM A IMAGEM DA TEATRALIDADE NA ARTE DA CAPOEIRAGEM

Apolo[2] é a representação do equilíbrio e da harmonia. É saudado na mitologia por inúmeros atributos. Deus da luz, Apolo é o brilho e a força do Sol. Nasce no dia sete do mês délfico. Sua lira possuía sete cordas. Sua doutrina contém sete máximas. É o deus da sétima porta, de acordo com as ilações de Ésquilo.
Alto, bonito e majestoso, o deus da música e da poesia se fazia notar antes do mais por suas mechas negras, com reflexos azulados, “como as pétalas do pensamento”. Muitos foram assim seus amores com ninfas e, por vezes, com simples mortais (Brandão, 1999, p. 87).
Amou  a ninfa náiade Dafne[3], filha do deus-rio Peneu. Com a ninfa Cirene, teve o semideus Aristeu
Também as musas não escaparam aos seus encantos. Com Talia foi pai dos Coribantes, demônios dos cortejos de Dionísio; com Urânia gerou o músico Lino e com Calíope teve o músico, poeta e cantor insuperável Orfeu. Seus amores com a ninfa Corônis, de que nascerá Asclépio(...). Com Marpessa, filha de Eveno e noiva do grande herói Idas, o deus igualmente não foi feliz. Apolo a desejava, mas o noivo a raptou num carro alado, presente de Posídon, levando-a para Messena, sua pátria. Lá, o deus e o mais forte e corajoso homem se defrontaram. Zeus interveio, separou os dois contendores e concedeu à filha de Eveno o privilégio de escolher aquele que desejasse. Maspessa, temendo que Apolo, eternamente jovem, a abandonasse na velhice, preferiu o mortal Idas. Com a filha de Príamo, Cassandra, o fracasso ainda foi mais acentuado(...). Em Cólofon, o deus amou a advinha Manto e fê-la mãe do grande advinho Mopso(...). Com Evadne teve Íamo, ancestral da célebre família sacerdotal dos Iâmidas(Brandão, 1999, p. 87-88).
Para Nietzsche ( 1998, p. 28), o grande plasmador apolíneo  representa o mundo do sonho em cuja produção cada ser humano é um artista consumado. Nesse caso, a experiência onírica  resplandece em enlaces divinatórios que se consubstanciam  no reino da luz e da fantasia
Apolo, na qualidade de deus dos poderes configurados , é ao mesmo tempo o deus divinatório. Ele, segundo a raiz do nome o “resplandente”, a divindade da luz, reina também sob a bela aparência do mundo interior da fantasia.
Dioniso[4] é trazido a nós pela representação da embriaguez. É a personificação do vinho. Inventor do teatro. Por isso está associado a Melpomene, a musa da tragédia. Também por isso é o deus da transformação (metamorphosis).
Dioniso se constitui na embriaguez através da  reelaboração da divindade sem deus.  É o deus perseguido. Todavia,
...a perseguição  a Dioniso, sob a perspectiva mítica, faz parte de um rito iniciatório e catártico: a purificação pela água. Este é um dos temas bem atestados em quase todas as culturas primitivas. O episódio da perseguição aparece em determinados momentos das festas e cerimônias a que o filho de Sêmele presidia (Brandão, 1999, p. 115).
Sob a magia de Dioniso ou sob a influência da beberagem narcótica, tal como Nietzsche   afirma na Origem da tragédia no espírito da música,
...todos os povos e  homens primitivos falam em seus hinos, ou com a poderosa aproximação da primavera a impregnar toda natureza de alegria, despertam aqueles transportes dionisíacos, por cuja  intensificação o subjetivo se  esvanece em completo auto-esquecimento (Nietzsche, 1998, p. 30)
A harmonia  e a necessidade da medida eram exigidas nas configurações apolíneas.  O dionsíaco trouxe a desmesura  e a desconfiguração.  É necessário ultrapassar a aparência  em busca de novos signos ou mediações estéticas. É que a possibilidade  da criação não se inscreve no campo normativo.
O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, afundava aqui no auto-esquecimento do estado dionisíaco e esquecia os preceitos apolíneos. O desmedido  revelava-se  como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores, falava por si desde o coração da natureza. E foi assim que, em toda parte onde o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e aniquilado (Nietzsche, 1998, p. 41).
É nesse campo que a pedagogia dionisíaca se interpõe ao normativo e transforma deus no artista que, do palco da vida, reescreve e reinventa o mundo. No Assim falou Zaratustra, Nietzsche (1986, p. 58) assinala:
Eu acreditaria somente em um deus que soubesse dançar. E,  quando vi o meu Diabo, achei-o sério e metódico, profundo, solene: era o espírito de gravidade (...). Não é com ira que se mata, mas com riso. Eia,  pois  vamos matar o espírito de gravidade!    
3- A DANÇA DO BÊBADO NA RODA DE CAPOEIRA: UM MODO ESPETACULAR DE EMBRIAGUÊZ
Capoeira é arte do fingimento. Disfarce teatralizado do jogo que dança uma luta de guerra. Dispositivo que trafega pelos caminhos de relaboração.  Trapaça montada no cenário da roda que gira o mundo entoado pelas cantigas de saudade, pelo choro do berimbau e/ou pela potência compassada do pandeiro e do atabaque. Capoeira é um espetáculo[5] e, em alguns casos, constitui personagens. De acordo com PRADIER (1999: 24),
Por “espetacular” deve-se entender uma forma de ser, de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma forma distinta das ações banais do cotidiano.
Capoeira compreende as artes do espetáculo como a dança e o teatro. É um jogo que joga uma luta de guerra. Avança no cenário da roda - a ginga, malícia e falsidade participam deste espetáculo. Poder acertar e não fazer. Marcar o ponto de desequilíbrio no compasso bailando na volta que o mundo dá. Faz e desfaz o encanto de um personagem que ginga nesse bailado e esquiva de dentro para fora na guarda do outro. Algo escapa ao cenário montado.
O jogador corre como se vivesse um duelo de vida e morte. Como se o seu desafeto fosse extremamente superior – puro disfarce. O corpo é tomado de empréstimo. Pela mandinga bailada na roda surge um bêbado desequilibrado. Ele dança de um lado para outro. O dançarino ator percorre a roda. Lança o seu personagem no jogo que continua bailando no compasso da musicalidade. É que a dança e o teatro participam de uma ação espetacular, ou como esclarece BARBA (1995, p. 12): A tendência de fazer distinção entre dança e teatro, característica da nossa cultura, revela uma ferida profunda, um vazio sem tradição, que continuamente expõe o ator a uma negação do corpo e o dançarino para a virtuosidade. Para o artista oriental esta distinção parece absurda.
É como se a produção de personagens na capoeira fosse diluída pelo bailado do dançarino. Na realidade a capoeira encontra os seus personagens referenciados em suas práticas, costumes e produção cultural. Multiplicidade de ações e acontecimentos interpretados são revividos em nomes, gestos, sentidos e acontecimentos: Bêbado, malandro, velho, fraco, instrumentos de defesa (arma) ou simplesmente a produção de um acontecimento. Dentre tantos e complexos sentidos e acontecimentos vividos e possíveis de interpretar em rodas de Capoeira Angola[6], podemos citar alguns que foram partilhados em nossa pesquisa de campo. Participei do IV Encontro de Capoeira Angola. O evento que reuniu os principais mestres de capoeira do Recôncavo Baiano - O 4º ano de memória viva do Mestre Ferreirinha. Este evento que se realizou nos dias 6 e 7 de Julho de 2002 encerrava-se com palestras e uma grande roda de capoeira. Iniciada com uma roda só de alunos e, em seguida, o cenário da roda é convertido no grande espetáculo do dia - a roda dos alunos formados e mestres. Nesta roda aluno não entra. Foi aí que vi alguns dos principais mestres da região jogar: mestre Adó, Mestre Macaco, Mestre Dimas, Mestre Felipe, Mestre Carcará, Contra-mestre Lampião, Contra-mestre Ivan de Ferreirinha.  Foi um grande presente, confesso.
Quando vi pela primeira vez achei entranho. Mestre Carcará jogava com o Contra-mestre Ivan. O jogo era iniciado quando mestre Carcará puxava o seu oponente para o centro da roda e se lançava ao solo com as mãos estendidas para que as pernas passassem por cima de seu corpo, concluindo assim o AU que, naquele contexto, era sinal de que o jogo se iniciara. Mestre Carcará ginga de um lado para o outro e, o menor sinal de descuido é penalizado com um martelo. Foi então que entre martelos e esquivas, Ivan de Ferreirinha inicia o jogo do Bêbado. As pernas balançavam sem – aparentemente – atender a qualquer possibilidade de comando. Como se não conseguisse manter o corpo em situação de repouso. Como se estivesse perpetuando uma topada que acabara de receber. Por outro lado, o movimento dos braços passeia pelo rosto, tórax como se tentasse agarrar o vento ou um ponto qualquer de equilíbrio imaginário. O que mais me chamou atenção foi o rosto e a expressão que transbordava de seu semblante. Era uma mistura de alegria, felicidade, êxtase, embriaguez e, acima de tudo, falsidade e malícia. Tudo aquilo refletia a mimética forma de capturar e expressar a construção de um papel ou de um conceito de fragilidade que seria transmudado pela arte da malandragem. Ora, a embriaguez era, naquele contexto, a possibilidade de mostrar-se enfraquecido para acertar o outro pela incerteza e falsidade e, realmente, o menor descuido, Mestre Carcará poderia ser atacado. Entre martelos, rasteiras e ponteiras, encontro outro acontecimento encenado na roda.
O Contra-Mestre Ivan entre uma esquiva e um ataque para o jogo e, como em filme mudo, utiliza alguns gestos procurando nos bolsos da sua calça a sua própria carteira. O sentimento de admiração e espanto invade o capoeirista que pede ajuda aos partícipes da roda para encontrar a sua carteira. E quando todos se empenham em caçar tal objeto perdido, o Contra-mestre Ivan marca uma chapa de costas contra o mestre Carcará e o jogo continua.
Na mesma roda Mestre Felipe e Mestre Carcará jogavam com uma cadência invejável. Cada ponto marcado era coberto com um bloqueio ou uma esquiva perfeita. No tempo do jogo. Na mandinga que marca um ponto de desequilíbrio e desfecha um martelo ou rabo-de-arraia. Quando ninguém esperava, Mestre Carcará, para o jogo. Como se pedisse piedade – tudo falsidade – convoca um iniciante para jogar em seu lugar. Normalmente nenhum membro da roda aceita o convite. Até que um iniciante desavisado aceita tomar as dores do mestre. É recebido com uma chapa. Deixa rapidamente o jogo e os capoeiristas que estavam jogando continuam o espetáculo.
Podemos citar ainda a utilização de instrumentos que fizeram parte da indumentária dos capoeiristas e, com o tempo, foram abolidos. É o caso da navalha. O jogo com navalha no pé era comum na escola de Besouro Mangangá, do Recôncavo Baiano. Cobrinha Verde – aluno de Besouro – transmitiu esse ensinamento aos seus alunos. Entretanto, destaco a utilização da navalha na roda de capoeira imersa ao cenário da roda e do joga da capoeira. A navalha aparece como uma brincadeira. É um elemento que anima a roda em determinado tipo de jogo.
Mestre Curió – por exemplo – em um jogo de capoeira, sai da roda vai até uma mesa que se encontra na entrada do salão onde funciona sua academia, no pelourinho, empunha um objeto – grampeador – como se fosse uma navalha. Investe contra o seu oponente dando continuidade ao jogo.
Lembrar a navalha é, na realidade, rememorar um tempo em que este instrumento participava da roda quando se jogava com a navalha no pé.  Apesar de tudo isso, a capoeira não precisa ser teatro – configurar-se enquanto tal – para existir. Como espetáculo ou ação espetacular ela torna-se o seu próprio modo de conceituação ou de expressão. É quando Khaznadar (1999, p. 56) ao referir-se ao conceito de etnocenologia e o debate que cerca esse conceito, inquirir:
 E se estudássemos e documentássemos estas formas espetaculares não mais como referência a uma forma estabelecida e desenvolvida como a do teatro ocidental, mas simplesmente a partir dos conceitos das culturas e das civilizações que produziram tais formas?
Nesse caso, aquilo que Jean Duvignaund (1999, p. 31) chamou de polifonia da expressão social, ou uma partitura onde os seres hodiernos atuam sem hierarquia em diversos níveis e celebram seus amores, aplacam seus sonhos no porvir que se encantam com as festas e clamores. Tornam mágicos os símbolos, cantam, dançam, inventam a poesia, o mito e a representação.
Essas ações espetaculares que o homem inventa das mais diversas formas para celebrar a vida encontram-se imersas em uma cultura e uma civilização e, neste caso, não seria plausível submete-las aos cânones do teatro ou da dança convencional. É o que Khaznadar(1999, p. 56) afirma quando lembra  o tratado de Zeami para o estudo de um Nó e o Nataya Shastra – Um Nó não é teatro é um Nó, o Kathakali, a mesma coisa, e assim por diante. Tomando de empréstimo esse conceito de espetáculo, poderia dizer o mesmo em relação a capoeira. A capoeira não é teatro é capoeira, mas inegavelmente é dança que se pode deslocar para um cenário de guerra.
O conceito de espetáculo amplia consideravelmente a possibilidade de investigar as artes do espetáculo sem ter de seguir necessariamente os cânones do teatro tradicional. Isso não quer dizer que não se possa localizar elementos de teatralidade na capoeira, particularmente, na Capoeira Angola. Em relação a Capoeira Regional – que também é uma forma de espetáculo -, torna-se mais difícil encontrar elementos de teatralidade pela rapidez do jogo e dos movimentos. O tempo e o espaço do jogo são diferentes. Prioriza-se muito mais a dança/luta. Isso faz com que alguns grupos de Capoeira Regional limitarem essa arte ao aspecto esportivo de uma arte marcial.
Entretanto, as diferenças existentes entre a capoeira angola e a regional resguardam os elementos particulares que diferem estas modalidades de capoeira e, neste caso, a capoeira é entendida simplesmente como espetáculo. Resta saber como essa expressão “espetacular” produz suas formas e matrizes estéticas? Como constituem seus modos de espetáculos? Como transitaram pela história? Que mudanças estéticas foram acrescidas a suas práticas corporais?
Cantar com seus símbolos, nomes e acontecimentos é parte de um segredo que pulsa a tensão de um tempo marcado pela diversidade de caminhos.  Os nomes, símbolos e rituais revivem na memória e nos feitos hercúleos de seus partícipes. Entretanto, alguns indivíduos marcam o seu momento histórico com tanta potência que a força de suas ações, dificilmente, poderia ser esquecida; pois, se o esquecimento nos protege das dores, não impedirá que os homens sintam saudade ou rememorem os seus mitos, símbolos e imagens. De acordo com ELIADE (1991:07), o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camufla-los, mutila-los, degradá-los, mas que jamais poderemos extirpá-los.   
Em alguns casos, esses indivíduos transmudam-se em divindades, mitos ou heróis. São olimpianos que viveram um ritual de passagem e, ao mesmo tempo, estendem a própria morte ao constante reinício, recolocando em novo lugar o dilema da transitoriedade humana. Já que trafegam no interstício da vida e da morte, ganham uma condução divina no esplendor das luzes celestiais movidas pelas fendas da história.
Na realidade eles não morreram. São cantados, relatados, narrados, descritos pela literatura ou arquivados em documentos que, no presente, devem simplesmente ser encontrados. Alguns homens deixam pistas de sua passagem pela história. Deixam marcas, indícios ou pegadas, para que o historiador tenha um mínimo de entretenimento.
Temos ainda a possibilidade de reencontrar pistas ou vidas a partir da literatura, reinventando a cena cotidiana com a força da oralidade. Valeria a pena estudar – de conformidade com ELIADE (1991:07) - a sobrevivência dos grandes mitos durante o século XIX. Veríamos como, humildes, enfraquecidos, condenados a mudar incessantemente de emblema, eles resistiram a essa hibernação, graças sobretudo a literatura. A possibilidade de preservar os mitos e símbolos – quase esquecidos pelo tempo ou pela história oficial – implica, dentre outras coisas, o poder que a literatura tem de trapacear com a língua; a trapaça salutar proposta por BARTHES (1978: 16) também denominada literatura.
Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear com a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu o chamo, quanto a mim: literatura (BARTHES, 1978: 16).

1-      REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBA, Eugenio e SAVARENSE, Nicola. A arte secreta do ator. São Paulo: HUCITEC/UNICAMP.
BENJAMIN, Walter. A Imagem de Proust. In. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. P. 36 – 49. 
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1999. 336p.
CARNEIRO, Edison. Capoeira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. 23p.(Cadernos de Folclore, 1).
CASTORIADIS, Cornélius. Feito e a ser feito – As encruzilhadas do labirinto V. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 304p.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 238p.
DELEUZE, Giles. GUATTARI. O Anti-Édipo – Capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assírio & Alvin,1996.
_____. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 120 p.
DUVIGNAUD, Jean. Uma nova pista. In. Etnocenologia – Textos Selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião (orgs). São Paulo: Annablume, 1999. 31-32p.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos – ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 178p. 
FALCÃO, José Luiz Cirqueira. A Escolarização da capoeira. Brasília: ASERF – Royal Court, 1996.155p.
KHAZNADAR, Chérif. Contribuição para uma definição do conceito de etnocenologia. In. Etnocenologia – Textos Selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião (orgs). São Paulo: Annablume, 1999. 55-59p.
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana. São Paulo: Opus, 1991. 
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
_____. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
OLIVEIRA, Waldir Freitas & LIMA, Vivaldo da Costa. Cartas de Édison Carneiro a Artur Ramos – De 4 de janeiro de 1936 a 6 de Dezembro de 1938. São Paulo: Currupio, 1987. 190p.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia.  In. Etnocenologia – Textos Selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião (orgs). São Paulo: Annablume, 1999. 23-30p.
REGO, Waldeloir. Capoeira angola. Salvador: Itapoã, 1968. 417p.
SODRÉ, Muniz. Prefácio. In. Água de beber Camará! Um bate-papo de capoeira. Salvador: EGBA, 1999. Pp. 13-20.



[1] Professor Associado III do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC. Coordenador Editorial da Coleção Diálogos Intempestivos da FACED/UFC. Bacharel em Filosofia Política. Mestre e Doutor em Sociologia. Pós-Doutor em Artes Cênicas.(UFBA)..

[2] De acordo com Brandão ( 1999, p. 85), o Apolo pós-homérico vai progressivamente reunindo elementos diversos, de origem nórdica, asiática, egéia e sobretudo helênica e, neste último aspecto, conseguiu suplantar por completo Hélio, o Sol propriamente dito. Fundindo numa só pessoa e em seu mitologema, influências e funções tão diversificadas, o deus de Delfos tornou-se uma figura mítica deveras complicada. São tantos os seus atributos, que se tem a impressão de que Apolo é um amálgama de várias divindades, sintetizando num só Deus um vasto complexo de oposições. 
[3] Apolo, gracejando Eros em relação às suas flechas,  motiva o filho de Afrodite a comprovar o venenoso poder de suas flechas amorosas. Contudo, Eros não só possuía o dom  de causar amor ferindo com as pontiagudas flechas, mas, também,  a repulsa. Isso ocorre com Dafne que, flechada com a flecha da repulsa, vê Apolo desesperado perseguir-lhe, picado com a flecha do amor. A ninfa se desespera e não corresponde aos desejos de Apolo. Quando estava perto de ser alcançada pelo deus, pede ao pai que a ajude. O pedido foi atendido pelo deus-rio que a metamorfoseia em um loureiro, árvore predileta de Apolo.   
[4] Segundo Brandão ( 1999, p. 117),  viu-se que o deus do êxtase e do entusiasmo, até mais ou menos a década de 50, era considerado como uma divindade que chegara tardiamente à Hélade. Pois bem, a partir de 1952, as coisas se modificaram: é que a decifração de uma parte dos hieróglifos cretomicênicos por Michael Ventris, segundo se mostrou no Vol. I, p. 53, ou mais  precisamente, a decifração da Linear b, consoante a classificação de Arthur Evans, demonstrou que o deus já estava presente na Hélade pelo menos desde o século XIV ou XIII  a c, conforme  atesta a tabela X de Pilos. Há de se perguntar  por que um deus tão importante, já documentado no século XIV, só se manifesta, e de forma aparentemente grotesca, no século IX, e só a partir dos fins do  século VII a C. tem sua entrada solene na mitologia e na literatura? É quase certo que o adiado  aparecimento  de Dioniso e sua tardia  explosão no mito e na literatura se deveram sobretudo a causas políticas (...). Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios. Com seu êxtase e entusiasmo, o filho de Sêmele era uma séria ameaça à polis aristocrática .
[5] Não utilizaremos o conceito de espetáculo que ficou muito conhecido nos anos 60, com Guy Debord. Para referido autor, espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é o suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real.(DEBORD, 1997, P. 14) . Esta abordagem extremamente limitada do espetáculo filia este conceito a uma base material e, conseqüentemente, a um determinado modo de produção. É um mero reflexo da base material da sociedade. Inversamente, entendemos que as possíveis manifestações espetaculares resultantes da criação e do gênio humano inventadas para celebrar conforme PRADIER (1998, P. 24) , os deuses da natureza, chorar os mortos , glorificar os vivos, dar prazer, provocar angústias ou admiração, convencer, seduzir, festejar o amor, aplacar instâncias invisíveis, solenizar os reencontros, rir, zombar, recitar, curar e que tem todas uma característica comum: a de associar estreitamente o corpo e o espírito num acontecimento social espetacular?ou como diria KHAZNADAR (1998, P. 58) – para demarcar o campo da etnocenologia -, a etnocenologia estuda, documenta e analisa as formas  de expressões espetaculares dos povos. Por espetáculo, deve-se entender, as formas de expressão de uma cultura que escapam aos códigos e normas do teatro tradicional. A etnocenologia é, enfim, o conceito e a disciplina que permite dar, outra vez, aos povos, os meios para praticar os seus próprios sistemas de referências, para se libertar das ideologias dominantes e resistir à uniformização cultural (KHAZNADAR, 1998, P. 59).    
[6] Utilizo esse conceito a partir das referências teóricas já existentes e aceitas no estudo da capoeira. Não estabeleço uma relação imediata entre a capoeira Angola e a capoeira que existia antes da Capoeira Regional. A Capoeira Angola é uma criação baiana que vai tomando forma na disputa com a Luta Regional Baiana de Mestre Bimba (1899/1900 – 1974) e se desloca para outros centros e países. Sobre isso vale ressaltar a carta de Édison Carneiro para Artur Ramos escrita em 27 de janeiro de 1936 – Mar Grande (Bahia). Neste documento, CARNEIRO (1987, P. 89), Nos cânticos de capoeira, identifiquei coisas muito interessantes: a) totemismo (a cobra); b)heróis dahomeizados (Antônio Pequenino, Desidério de Sauípe); lembranças da África (Aruandê – Loanda): sincretismo (“joelhos no pé da cruz...”); presença do mar (dona Maria), etc. A capoeira, aqui se chama também capoeira de angola. Penso encontrar uma remota origem da capoeira na cafuinha da Luanda que você cita no “Folk-lore”) (OLIVEIRA, W.F& LIMA, V. da C. , 1987, p. 89).