quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

NA CADEIA TAMBÉM SE APRENDE A ESCREVER: REMEMORANDO A DIFERENÇA NO ESPAÇO CARCERÁRIO A PARTIR DA HISTÓRIA DE VIDA DO PROFESSOR FRANCISCO SIQUEIRA DE LIMA

NA CADEIA TAMBÉM SE APRENDE A ESCREVER: REMEMORANDO A DIFERENÇA NO ESPAÇO CARCERÁRIO A PARTIR DA HISTÓRIA DE VIDA DO PROFESSOR FRANCISCO SIQUEIRA DE LIMA
JOSÉ GERARDO VASCONCELOS
1     Introdução
O escopo do presente estudo é analisar a história, memória e ação da diferença, que se consubstanciam  no processo educacional ocorrido no final da década de 1980, no Instituto Penal Professor Olavo Oliveira – presídio masculino situado em Fortaleza –, comandado por um grupo de vinte e três detentos, no qual um deles merece atenção especial: Francisco Siqueira de Lima. Era reincidente, pois havia cumprido pena nos principais presídios do Rio de Janeiro, na década de 1970 e início da década de 1980.
Interessa-nos destacar a versão mnemônica do processo pedagógico desenvolvido no interior do referido presídio por um membro do grupo dos  vinte e três – como eram conhecidos – e, ao mesmo tempo, investigar as possibilidades de deslocamento de sentidos na constituição da diferença no espaço carcerário.  
Nesse período, o referido presídio era denominado Caldeirão do Diabo. Essa conceituação deve-se, principalmente, aos movimentos moleculares de detentos que, organizados ou não em pequenos grupos, atuavam no cotidiano carcerário, impedindo um processo organizacional mais amplo dos internos como vinha ocorrendo em outros presídios do País. Esses movimentos não levavam em conta alguns códigos elementares dos presos que se constituíam em grandes presídios e, muitas vezes, cometiam atos considerados ilícitos pelos próprios detentos como: estupros, assaltos aos internos e seus familiares, e extorsões.
Vale ainda destacar que a cadeia, embora abrigue, na sua maioria, indivíduos com baixa escolaridade, não pode servir como base para uma possível homogeinização, ou seja, nem todo preso é analfabeto. É nesse campo que se pode entender o papel do ex-presidiário Francisco Siqueira de Lima, que nasceu no dia 21 de fevereiro de 1949,  concluiu os “velhos” primário, ginasial e científico.
Lembro-me dos colégios que estudei. Lembro de todos. Quando eu fui à escola pela primeira vez eu contava 8 anos. Eu me lembro porque o meu cabelo só foi cortado aos 7. O motivo foi uma promessa que minha mãe fez com São Francisco das Chagas do Canindé (...)No velho ginásio São Francisco, hoje Colégio São Francisco. Estudei lá quatro anos. Fui aprovado e conclui o ginasial. Eu tenho até hoje guardado de lembrança o convite da época, com o nome do patrono. (...) Tinha direito a uma festa lá no Clube de Regatas da Barra do Ceará, com o Ivanildo e seu conjunto. Nunca me esqueci. Foi uma coisa memorável para a nossa mentalidade. Nós todos crianças e toda aquela festa[1]
A memória exalta e destaca elementos-chaves que se expressam na oralidade. Marcam os pontos que se fixam em volumes de lembranças prontas a emergir dos escaninhos mais profundos de sua alma. Conforme Benjamin (1994, p. 37), o mais importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração. Esse tecido é fixado pelo presente ou conforme Bergson ( 1990):
Meu presente parece ser algo absolutamente determinado, e que incide sobre o meu passado. Colocado  entre a matéria que influi sobre ele e a matéria sobre a qual ele influi, meu corpo é um centro de ação, o lugar onde as impressões recebidas escolhem  inteligentemente  seu caminho para se transformarem em movimentos efetuados; portanto representa o estado atual do meu devir (Bergson, 1990, p. 114).
Para tal, há que se pensar o lugar da oralidade na pesquisa. A memória é aqui tematizada como um olhar metodológico possível  sobre a história recente. Não nos convém, nesse caso, utilizá-la  como mero apêndice da história documental. Não é a verdade o centro de nossa investigação, pois entendemos que os elementos subjetivos e certas deformações produzidas pelo esquecimento devem ser incorporados teórica e metodologicamente à pesquisa, não como um problema mas, principalmente, como possibilidades de deslocamentos e incorporação de sempre novos sentidos. Conforme Ferreira ( 1994, p. 10). As distorções  da memória podem se revelar mais um  recurso do que um problema, já que a veracidade dos depoimentos não é a preocupação central.
É nesse universo metodológico que se situa essa pesquisa. Foram gravadas 20 horas de fita,  no final de 1999, com o senhor Francisco Siqueira de Lima.   Ex-presidiário, poeta e militante de Direitos Humanos da Pastoral Carcerária do Ceará. As fitas foram transcritas com o auxílio de bolsistas do PIBIC, e o resultado foi reorganizado em processo de transcriação em que a fala foi decodificada, reorganizada e classificada a partir de conteúdos espaciais e temporais. Aqui se apresenta um breve resumo dessa pesquisa. Dividimo-la, para melhor exposição, em duas partes: na primeira, abordaremos o processo pedagógico ocorrido no interior de grandes presídios do Rio de Janeiro, quando se faz pungente o contato dos presos comuns com os militantes comunistas recolhidos na década de 1930 e no pós-1964.  Lançamos em processo de desconstrução a possibilidade de se deslocar sentidos e, conseqüentemente, quebrar as binárias segmentaridades, para utilizar uma expressão de Deleuze & Guattari(1996). Em  seguida, trafegaremos pelo interior do presídio Instituto Penal Professor Olavo Oliveira para relatar a experiência inédita de alfabetização dos detentos realizada por outro preso.   
2- A Pedagogia Carcerária no Entorno da Marginalidade: Experiências, Sentidos e Códigos Deslocados
A organização de detentos no interior dos cárceres situa-se ao longo da história das prisões no Brasil. Essas organizações não constituem práticas homogêneas,  tampouco podem ser referendadas como sinais de conscientização política. É, todavia, de bom alvitre informar que a possibilidade de articulação no interior de instituições totais sobrepõe-se aos ritos oficiais, podendo, nesse caso, escapar através do subterrâneo da vida marginal que, em muitos casos, pensa na inviabilidade dessas práticas. É nosso intuito rever aqui alguns conceitos que se foram avolumando ao longo da história e se encaixam em supostas racionalidades fixadas nos campos da história. Há que se pensar em possibilidades outras ou deslizes conceituais que se podem deslocar e, ao mesmo tempo, fazer transmudar sentidos outrora fixados nas suas eternidades.
A cadeia como lugar de punição e vigilância atende aos conflitos de múltiplos matizes, encetando ritos de crueldade sob os corpos condenados e retirados do convívio social. O processo pedagógico carcerário, resultante de recomposições moleculares e marginais, podem, ao mesmo tempo, insurgir-se contra a institucionalidade da pena, traçando vielas ou linhas de grandes intensidades propulsoras de minúsculos campos de liberdade no interior da prisão. É nesse sentido que poderiam ser entendidos alguns processos organizativos nessas instituições totais. Como na década de 1930, o contato com presos políticos revela-se de grande significado para os reclusos comuns. É, na realidade, a ampliação e o reconhecimento de direitos que se estabelecem, fazendo-os ressoar pelas grades e paredes dos presídios. São reivindicações que se vão enraizando a partir de contatos travados entre presos políticos e presos comuns. De acordo com os estudos de Lima,
...aqui no Brasil, por exemplo, a massa carcerária extraiu muitas lições do contato havido na década de 1930 com os membros da Aliança Nacional Libertadora encarcerados na Ilha Grande. Quando os presos políticos se beneficiaram da anistia que marcou o fim do Estado Novo, deixaram nas cadeias presos comuns politizados, questionadores das causas da delinqüência e conhecedores dos ideais do socialismo (Lima, 1991, p.27),
Esses contatos ampliaram-se no pós-1964. Todavia, as diferenças se sucedem e, em determinados momentos, emergem nas reivindicações as possibilidades de travarem caminhos alternativos. Cercados de alguns cuidados, os presos comuns demarcam o seu campo. É como se pode observar na fala de Lima(1991, p. 48), ao se referir ao grupo - posteriormente denominado Comando Vermelho - que se inicia na prática da organização carcerária do temido presídio da  Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Lá os coletivos entram em disputa. Os presos comuns lançam manifesto que respondia a outro manifesto dos presos políticos, este intitulado: “Existem 30 Presos Políticos na Ilha Grande”, com o manifesto: “ Somos 90 Presos Proletários”. O termo proletário é aqui apresentado como um jogo de contestação situado na diferença e, ao mesmo tempo, utilizado como uma categoria que se expressa com forte conteúdo político. Não se trata aqui de simples distinção entre o plano de expressão e o plano de conteúdo como propusera Hjelmslev (1985). É um deslocamento de sentido do termo  “proletários” lançado contra os defensores dos “proletários” que, estando presos, adquiriam privilégios enormes. Queixavam-se os presos comuns das prerrogativas dos presos políticos consubstanciadas e amparadas nas ações dos grupos militantes de direitos humanos. O sentido pode ser deslocado. Esse deslocamento não se concentra apenas no plano da superfície, tampouco movimenta-se no seu aspecto contraditório. Há que se pensar a diferença – de acordo com os estudos de Deleuze sobre Bergson (1999, p.36) -  como diferença de natureza  independente de toda forma de negação (...). É que a negação implica sempre conceitos abstratos, demasiadamente gerais. É nesse sentido que a dialética se torna insuficiente, demasiadamente lógica, racional e abstrata, para capturar os movimentos  moleculares da realidade. É nesse campo que se inscrevem as possibilidades de deslocamentos que vazam e escapam da zona de potência do poder e da norma. 
Do ponto de vista da micropolíica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares. Sempre  vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, a máquina de sobrecodificação: aquilo que se atribui a uma “evolução dos costumes” ( Deleuze, 1996, p. 94).
Esse descontentamento dos presos comuns extrapola o locus da reclusão e, ao mesmo tempo, constitui-se e consubstancia-se em linhas de ação da diferença ( Orlandi, 2000). O preso deve organizar-se e reivindicar melhores condições de existência. Essa ação pedagógica  pode fazer escapar às identidades marginais  e jorrar pelo interior de suas experiências moleculares uma ação subterrânea de extrema  eficiência. Já no início na década de 1980, no presídio da Água Santa, no Rio de Janeiro, surge um manifesto, citado por Lima, redigido por presos (1991, p. 41) que, na construção de suas reivindicações, asseguravam em denúncia:
As celas estão superlotadas. Em cada xadrez moram, em média 30 homens. As ralas espumas com que forram o chão, além de estarem impregnadas de insetos daninhos, não são suficientes para todos. Na maioria dos casos, dorme dois homens em cada espuma. Para mantermos a higiene somos obrigados a comprar desinfetantes  sabão com o nosso próprio dinheiro, pois nada disso a casa concede. Improvisamos panos para a faxina com pedaços dos cobertores. A água só é aberta três vezes ao dia. Não é permitido nenhum tipo de comunicação de um xadrez com o outro, por mais necessária que seja. A casa não dá nenhum tipo de ocupação. Se procurarmos fazer algum tipo de trabalho de artesanato, pagamos preços absurdos pelo material, comprado aqui na cantina. Estamos em Água Santa como se estivéssemos sepultados vivos.
Francisco Siqueira de Lima chega no Presídio de Água Santa em 1975. De acordo com suas lembranças, relatadas em entrevista, de forma extremamente desprazerosa pelo temor que causara o referido presídio e, ao mesmo tempo,  a espera  de um lugar que oferecesse condições ou pelo menos mais espaço de sobrevivência, ele refere:
Nós chegamos lá em 75, no presídio de Água Santa. Toda semana a POLINTER manda uma carrada - como eles chamavam - uma carrada de vagabundos.  Aquele caminhão grande que lá o pessoal chama de coração de mãe, porque sempre cabe mais um. Então toda sexta-feira a gente ficava naquela expectativa. Porque na Água Santa a gente sabia que pelo menos teríamos o café, o almoço e a janta  e,  na POLINTER,  não. Lá a comida era de 24 em 24 horas.
A chegada ao presídio da Água Santa foi acompanhada de um estereótipo marginal de mendicância. Os relatos de Lima corroboram:
...cabeludo, barbudo, imundo, fedendo e só com uma bermuda velha com uma cueca por baixo, um desespero. A gente começa a não gostar da gente mesmo. Lá tinha quatro ou  cinco presos que trabalhavam na barbearia, com a máquina elétrica para raspar a cabeça de todo o mundo no zero. Os percevejos  que escapam do veneno morre na máquina. Em seguida  todo mundo vai para uma cela grande. Todos os 50 ficava umas, duas ou três noites lá. Só que a característica do bairro de Água Santa é um bairro muito frio, porque é um pé de morro, e a própria natureza trata de congelar.  Os internos passam três noites no frio. O Paulão,  que era o diretor era tão pilantra que não aparecia na sexta-feira para não fazer a distribuição dos presos, (eram separados por artigos) ou para não jogar inimigo contra inimigo. Ele não ia na sexta-feira para passar mais o sábado e o domingo. Quando a gente ia ser distribuído para as celas, as unhas da gente já estavam roxas de frio.  Você fica ali sem  um cobertor, sem uma  almofada.  Você não tem nada, era no cimento, lá era cerâmica. Cerâmica gelada e você só de cueca, fazíamos tudo que era de movimento para esquentar e não tinha jeito. Era uma  coisa terrível.
Francisco Siqueira de Lima foi preso, juntamente com um companheiro, pela primeira vez, em flagrante, no ano de 1975, no Rio de Janeiro. Foi acusado de assalto, formação de quadrilha e resistência à prisão.  Após um longo percurso por várias delegacias  do Rio de Janeiro, que não os recebiam em razão das más condições físicas em que se encontravam, pois foram torturados em excesso no percurso que se iniciara no local da captura, torturas que se prolongavam até a delegacia mais próxima. Por essa razão, nenhum delegado os queria autuar. A saga do presidiário inicia-se. De acordo com o seu depoimento:
Fui apanhado quase no Largo da Carioca. Jogaram-me na caçamba do camburão e me algemaram para trás -  pés e mãos algemados. Colocaram-me dentro de uma viatura e me levaram paro o pátio da Estação da Central do Brasil. Com  mais ou menos uma meia hora, eles chegaram trazendo o Milton. Outra viatura, outra turma prendeu o Milton lá da Praça 15 também.  Trouxeram o Milton e nos  colocaram dentro da mesma caçamba. E  ai foi pancada,  foi pancada. A  sessão de pancadaria  reiniciou-se dentro do carro. Eles nos deixavam imobilizados e quem tinha fuzil segurava no cano e saía batendo com a coronha, quer dizer, você se protegia aqui mas a pancada pega na tua perna, pega na tua costela, pega no teu cotovelo, pega na tua cabeça, aonde pegar pegou não escolhem o lugar. Eles eram muito cretinos.
Após percorrer vários presídios do Rio de Janeiro, contrair duas tuberculoses, presenciar várias rebeliões e fugas de companheiros, o nosso informante cumpre a pena que lhe foi cominada pela Justiça do Rio de Janeiro e descreve a saída da cadeia com 33 anos, após 8 anos e 8 meses em estado de reclusão.
(...)fiquei naquela expectativa, até a hora que,  coincidentemente acontece -  foi num dia de visita. Um amigo lá de São Cristóvão tinha ido me ver. Foi lá só para me ver,  levar um cigarro para eu fumar e bater um papo. Ele já sabia que eu ia para liberdade e ele foi embora mais cedo. Eu não voltei para cela, fiquei no pátio brincando com os filhos de uns amigos meus. De repente o alto falante anunciou que eu tinha que comparecer lá no setor de segurança e disciplina.  Aí veio toda aquela emoção. Dá um nó na garganta, companheiros te cercam logo – aproveita bem, boa viagem...
3 Aqui eu Aprendi  Alguma Coisa Boa, eu Aprendi a Escrever
Uma vez vivi uma situação que me emocionou muito  - relata o nosso informante -    Eu estava bem tranqüilo nos meus afazeres carcerário e um amigo me procurou e disse:- Siqueira a Dra. Sandra – Diretora do Presídio - está  te chamando no gabinete dela. Eu  fui e ela disse que um rapaz que estava indo para liberdade gostaria de falar comigo. Eu o parabenizei e ele me falou: - Seu Siqueira , eu  vim preso aqui  na besteira 155, furto simples, e eu não sabia nem assinar meu nome.  Está aqui o meu prontuário com meu “dedão” – impressões digitais- e aqui eu aprendi a alguma coisa boa, eu aprendi a escrever.  Lá fora minha mãe vai ficar muito feliz em saber que outro preso me ensinou a botar meu nome.
Esse relato contraria os postulados rígidos de uma instituição carcerária. Para Foucault ( 1986b, 136), a prisão não reforma, mas fabrica a delinqüência e os delinqüentes. Temos ainda a assertiva que envolve o espaço disciplinar com os seus respectivos controles de espaço e de tempo; um tempo disciplinar que, para Foucault (1986a p.145), se impõe pouco a pouco à prática  pedagógica. Ou cria uma espaço de localização e quadriculamento (Foucault, 1986a p. 131).
Há que se perguntar pela possibilidade de deslocamento imiscuído nas ações do cotidiano para além da zona de potência ou fortalecida do poder. Pode-se pensar, conforme Deleuze ( 1996, p. 108), em uma zona de impotência , relacionada com os fluxos e quantas que ele só consegue converter, e não controlar nem determinar. É nesse sentido que um código, signo ou lugar pode apresentar-se como o seu outro ou outros. É nesse caso que se pode entender que de acordo com Orlandi ( 2000, p. 57) - quando se refere a ( logique du sens) lógica do sentido de Deleuze (1969, p. 68-69) - toda forma é um composto de relações de forças, de modo que a pergunta pela forma implica a pergunta  pelas forças relacionadas.
É bem verdade que essa proposição já está presente no pensamento de Nietzsche. Na Genealogia da moral, Nietzsche ( 1999, p. 19), ao analisar a genealogia do bom, afirma:  o juízo “bom” não provém daqueles aos quais se fez o “bem”! foram os “bons” mesmos, isto é os nobres, poderosos, superiores em posição e  pensamentos, que sentiram e estabeleceram  a si e a seus atos como bons. Isso implica dizer que a constituição de um signo lingüístico é trespassada por jogos de forças. Ou, como observa Foucault (1986c p. 25) o grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto.
Aqui reside a possibilidade de revisitar conceitos, reerguer os ritos. O presente trafega pelos tentáculos da história. Amarrá-los aos pontos de razão que classificam novas e velhas epocalidades  passa a ser, sem  rodeios, destituição da história efetiva. Cria-se, nesse caso, para além da história, muitos sentidos para os acontecimentos. O presente vai escapando e filtrando a história da não-história.  E o que não é história? Código de silencio; gesto que possa transgredir o dito histórico; documento não autorizado; poema obsceno grafado nas paredes de uma prisão, manicômio, convento ou escola; emblema decomposto; signo lingüístico inventado; amores proibidos; paixão desmesurada; escritos apócrifos; invalidade da honra? A história entra em cena em meio a jogos de força. É uma representação cuidadosa do que passou nos presentes transmudados e decodificados. A ponta de um sentido encoberto pode abrigar múltiplos caminhos e percursos somados aos sacrifícios históricos. Os acontecimentos, de que se trata nessa pesquisa, revelam-se como possibilidades de se deslocar ou escavar sentidos; remoê-los à luz do acaso ou re-significá-los  no calor das lutas  
Sendo assim, podem ser pensados outros sentidos para uma instituição carcerária, inclusive como uma instituição a servir de abrigo a experiências pedagógicas que escapem também às formalidades da pedagogia tradicional.
O movimento  que resultou em uma nova pedagogia no cárcere inicia-se no final da década de 1980. Francisco Siqueira de Lima estava novamente recolhido em uma instituição carcerária. Desta vez, na sua cidade. Estava condenado por assassinato que cometera  motivado pela defesa da honra.  Aqui se trata de uma crime passional com grande repercussão nos media locais. Referido crime deve-se ao assédio de um conhecido corretor de imóveis da região à filha de um amigo de Siqueira.
Tive que tomar o carro da mão dele. Coloquei-o no porta- malas com uma grande brutalidade. Fui até ali na confluência da Jurema com Conjunto Ceará e cometi o assassinato. Para se ter uma idéia até que ponto chega a crueldade humana - eu não nego isso. De lá eu fui com ele dentro da mala do carro, depositei  o corpo nas  proximidades  do aeroporto e deixei o carro na Aerolândia.
Esse é o relato do crime e, por isso, a condenação e o recolhimento no Instituto Penal Professor Olavo Oliveira. No referido presídio, comanda um movimento de pacificação e, em meio a esse movimento, negocia com a direção do presídio a possibilidade de alfabetizar detentos que assim o quisessem. As aulas são iniciadas com muita expectativa por parte dos detentos e da direção do presídio. Conforme relata o nosso informante:
Comecei dando as aulas a partir da linguagem deles. Engraçado que eu nunca tinha escutado nem falar em Paulo Freire. A coisa começou a funcionar,  acho eu, que era porque eu os tratava com muita liberdade. O meu método concreto era da nossa própria cultura, a própria linguagem deles, nada daquele negocio de B com A é igual a BA. O meu negócio era que eles conseguissem, pelo menos, assinar o próprio nome. Fui ensinando devagar. Mas o que  eu gostaria mesmo  era poder sair do campo formal da língua para a esculhambação, que era concreta.
Em  uma semana – segundo o depoimento - eles sabiam ler e escrever algumas palavras. Inicialmente essas palavras não eram tão sublimes, mas expressavam a linguagem do detento:  ( puta que pariu, cu e etc.) Só a partir daí foram aprendendo a escrever o nome. De acordo com o depoimento  - Quando eu vi o primeiro que escreveu o seu nome completo eu fiquei com os olhos cheio de lágrimas,  e ele todo contente.
Os próprios alunos passam a procurar a “escola”.
Quando uma turma já estava perto de terminar, outra já estava se formando. Eles próprios passavam a nos procurar. Para mim isso era algo muito bom espiritualmente. Nesse meio tempo, os agentes penitenciários começavam a achar graça. O dia de terça feira era muito legal, todos levavam um cigarrinho e ficavam pensando o que poderiam dizer para suas famílias na  quarta, que era o dia de visita.
O horário das aulas – conforme explica o professor - era totalmente flexível.
Tinha casos em que uns vinham avisar que não poderiam comparecer. Os motivos eram os mais diversos.  Diziam: - Siqueira, minha visita não veio ontem; não estou a fim de assistir aula, hoje; não afoguei o ganso ainda;  estou é puto, vou é tomar um comprimido para dormir. Eu liberava legal. Os agentes chamavam a nossa escola de Escola do Professor Raimundo, porque era muito divertida.
Entretanto, o movimento que estava dando certo sofre o primeiro grande e último ataque que levaria ao seu encerramento. A imprensa toma conhecimento do movimento de alfabetização do IPPOO e resolve fazer uma matéria. O problema é que resolveram fechar a referida matéria na sala do Secretário de Justiça ao alegar que o movimento fazia parte de um programa da Secretaria de Justiça. Isso revoltou os seus organizadores que resolveram cessá-lo.
Fiquei indignado. Aquilo era o mesmo que dar um soco no meio da minha cara.  Os meus companheiros que estavam ali disseram:  - Siqueira isso é muita sacanagem, que secretário safado, bicho sem vergonha, os meninos rasgaram mesmo ele de palavrão. Sabe o que é você se sentir mal depois da reportagem.  Os meninos começaram a fazer hora comigo dizendo que eu estava sendo treinado por fora. É o seguinte: a partir de amanhã não tem mais aula.  Os alunos então disseram: - o que é isso cara, nós vamos parar por causa disso? Eu disse: - não, vamos terminar essa turma, vamos terminar! Tem o pátio aqui próximo da carpintaria. Tem o salão – com espaço vazio - que podemos ficar. Vamos treinando de dois em dois , três em três, até terminar. Após isso, não darei mais aulas.
 4 Conclusão
O instante é a alteração da eternidade. A imagem de perfeição desfeita. A intocável totalidade é maculada em sua ordem pelo caos e o lodo que, desencantado no sublime ponto de configuração da eternidade,  faz emergir códigos necrosados da perfeição que foram fixados pelo discurso oficial. Perde-se então o sentido de plenipotência  configurado no telos anunciado da perfeição. As normas são desfeitas, e o cenário, arrumado cuidadosamente para abrigar o teatro da história, é, também, desfeito pela força e intensidade do instante. A história efetiva escapa aos códigos e lugares sagrados. Os sentidos se deslocam da mesma forma que os acontecimentos podem ruir para abrigar novos sentidos que, reunidos, podem ser desfeitos ou refeitos. Nesse caso, não se deve deixar de incluir o acaso na história. Suas lutas, seus campos de força  ou indulgências.
É nesse terreno movediço e escorregadio que se pode pensar a cadeia, não somente como um lugar de destituição da humanidade mas, também, como um locus de escolarização. Pode-se, assim, quando se parte da micropolítica,  entender as diferenças que participam da vida e da história. Um preso, assassino e ladrão, pode ser um poeta e um professor.
5 Bibliografia
BERGSON, Henri. Matéria e memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 204p.
BENJAMIN, Walter. A Imagem de Proust. In. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. P. 36 – 49. 
DELEUZE, Giles. GUATTARI. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 120 p.
_____. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999. 144p. ( Coleção TRANS).
FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: um inventário das diferenças. In. Entre-vistas: abordagens e usos da história oral. Ferreira, Marieta de Moraes (org). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1994. P. 1- 13.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1986a, 280p.
_____. Sobre a prisão. In. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986b  p. 129 – 144.    
_____. Nietzsche, a genealogia e a história. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986c  p. 15- 38. 
GUIMARÃES, César. Imagens da memória – Entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997, 249p.
HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Abril Cultural, 1995. P. 177 – 213. (Coleção Os Pensadores).
LIMA, Wiliam da Silva. Quatrocentos contra um – Uma história do Comando Vermelho. Petrópolis: Vozes, 1991. 108p.
LIMA, Francisco Siqueira de. Entrevistado  na Faculdade de Educação da UFC, nos meses de novembro e dezembro de 1999. 150p.
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral – Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 1998. 179p.  
ORLANDI, Luiz B.L. Linhas de ação da diferença. In. Gilles Deleuze: um vida filosófica. Rio de Janeiro, Ed.34. p. 49-64.


[1] Entrevista realizada na Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Ceará, nos meses de  novembro e dezembro de 1999.

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