sábado, 21 de agosto de 2010

HISTÓRIA E MEMÓRIA EM LEOPARDI E NIETZSCHE



José Gerardo Vasconcelos[1]

1 Introdução

O escopo do presente estudo é examinar o conceito de história e memória no pensamento de  Friedrich Nietzsche[2]  e sua aproximação com o poeta Giacomo Taldegardo Francesco Leopardi[3]. Mostraremos que a crítica ao sentido (finalidade) da história proposta pelo Filósofo alemão já se encontra  esboçada  na poesia e prosa de Giacomo Leopardi.
E, nesse caso, as possibilidades  são inúmeras  frente à  beleza estilística de dois filólogos, que se  movem em torno  de um complexo campo eivado pelos dilemas  da vida humana. Pela  poesia, Leopardi  alça vôos imponderáveis  e intempestivos. Sacode nas vielas  da história os arcabouços de temporalidade  removidos pelas lembranças , e  encontra no dor o mais poderoso elemento da  mnemônica.  Seguindo a mesma trilha não traçada teleologicamente, pois continua difusa, arriscada e  caótica nas rachaduras  apalpadas pelo gênio de Leopardi,  Nietzsche radicaliza contra a verdade e os elementos axiológicos  que impedem as paixões humanas. Encontra na dor  um elemento propulsor da lembrança. Consoante as suas afirmações na Genealogia da moral, nunca nada se passou sem sangue, martírio, sacrifício, quando o homem achou necessário  se fazer uma memória ( Nietzsche, 1983a, p. 304).
É provavelmente uma genealogia da genealogia  de Nietzsche.  A pesquisa da origem  pode ser encontrada em Nietzsche ou Nietzsche bebe nas águas leopardianas? O Eterno retorno  gestado na alternância do nascimento e perecimento não estaria, pelo menos em germe, no pensamento de Leopardi? Inicialmente,  mostraremos a aproximação de Nietzsche com o poeta de Recanati em relação aos aspectos mais gerais do pensamento de Nietzsche; em seguida, analisaremos a aproximação dos dois filólogos em relação à idéia de progresso e felicidade; na seqüência do texto, examinaremos  a crítica , teleologia e o conceito de genealogia em Nietzsche e, finalmente, procuraremos entender  a importância da lembrança, esquecimento e dor para o Filósofo alemão e para o Poeta de Recanati.
2  Nietzsche e Leopardi: uma primeira aproximação
Refletir sobre o sentido da história  no pensamento do Poeta  de Recanati é embriagar-se  pelo encanto do filólogo e a erudição de um  gênio  que se estorva  nos limiares da filosofia moderna e nos rituais lúgubres da solidão.  É pela poesia  e pela prosa leopardiana que reencontramos  os segredos e a vitalidade de muitos conceitos nietzscheanos. É no mistério  e na força viva de seus versos  que as tragédias modernas são relançadas  e coabitam nos diversos sentidos de um tempo marcado pela força da crítica,  só comparada  à tragédia[4] nietzsceana de Assim falou Zaratustra.
É nesse intempestivo  poeta  do mundo moderno que  o sentido da história, a felicidade, a verdade e o prazer são revisitados  e a demonstração  da infelicidade e o diálogo com a morte não poupam sequer os deuses, como acontece  a Quíron que, entediado com a vida,  pede licença a Júpiter e morre.
Se Nietzsche é o pensador que mais radicaliza contra a verdade[5], Leopardi  prepara-lhe as bases.  Consoante as afirmações  de Nietzsche ( 1976, p. 32 ) no Crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelo, o mundo  verdade; uma idéia que não serve mais para nada, não obriga a nada;  uma idéia que se tornou inútil e supérflua; por conseguinte, uma idéia refutada: suprimamo-la.
Leopardi ( 1996b, 354), no Diálogo de Torquato Tasso e seu Gênio Familiar,  dos Opúsculos morais, diante da afirmação de Tasso sobre o sonho, o Gênio pergunta: O que é a verdade? Tasso afirma: Pilatos não soube mais do que eu. E o próprio Gênio responde: Bem, responderei por ti. Sabe que da verdade ao sonho não vai grande diferença senão que este, às vezes, é muito mais bonito  e doce do que ela, que jamais o será.
Leopardi encontra na dor o mais poderoso caminho e a mais nobre saída para o tédio. Enquanto o homem sofre, não se entedia pelos desprazeres do mundo, um mundo que caminha para o nada, que lança os seus filhos à solidão e ao desterro. É um constante exílio  de reposições  tênues rescritas no passar de um tempo que sucumbe nas tempestades. Conforme demonstra Leopardi  no Cântico do galo silvestre/ Opúsculos morais[6] (1996c, p. 418),
Cada parte do universo apressa-se, infatigavelmente, para a morte com solicitude e celeridade admiráveis. Apenas o próprio planeta parece imune à decadência e ao declínio. Contudo, se no outono e no inverno mostra-se quase enfermo e velho, não menos na nova estação, rejuvenesce sempre. Mas como os mortais no primeiro momento de cada dia readquirem  uma parte da juventude, assim  envelhecem todos os dias e finalmente se extinguem; igualmente o universo no princípio de cada ano renasce e nem por isso deixa de continuamente  envelhecer. Tempo virá em que ele e a própria natureza se apagarão. Assim como de grandes reinos e impérios humanos com seus movimentos maravilhosos, famosíssimos em outros tempos, nada resta hoje, de indício ou fama, do mundo inteiro, dos acontecimentos infinitos e das calamidades das coisas criadas, não restará um vestígio sequer.
Ao que parece, a teoria do eterno retorno encontra  uma possível sustentação no Canto do galo silvestre, publicado com outros escritos satíricos  nos Opúsculos morais, em 1827. Temos  conhecimento de que Nietzsche, durante o verão de 1881, na pequena aldeia de Silvaplana, durante um passeio, teve a intuição de o Eterno  retorno, que foi redigido logo depois em que afirma  que o mundo passa pela  alternância da  criação e destruição, de alegria e de sofrimento de nascimento e perecimento.
Nietzsche (1983c, p. 59) cita Leopardi de uma maneira especial, o que raramente faz com outros pensadores. Nas considerações extemporâneas II – Da utilidade e desvantagem da história para a vida, mostra que o pensador
supra-histórico ilumina a história dos povos e dos indivíduos de dentro para fora (...) pois como, na infinita profusão dos acontecimentos, não chegaria ele à saciedade, à saturação, e mesmo ao nojo! De tal modo que o mais temerário acabará, talvez, a ponto de dizer, como Giacomo Leopardi, a seu coração.
Cita  então um poema de Leopardi(1996d, p. 972)  e, embora não se refira  ao título do poema, trata-se  do A Si mesmo, escrito em 1833[7], em Nápoles, com 35 anos, quatro antes de morrer, sofrendo de uma enfermidade que já o torturava por 50 dias. O trecho do poema citado por Nietzsche é o seguinte: Nada vive que fosse digno/ De tuas emoções, e a Terra não merece um só suspiro./ Dor e tédio é nosso ser e o mundo é lodo – nada mais./ Aquieta-te (Leopardi apud Nietzsche, 1983c, 59).
Nietzsche fora convidado , através de uma carta  do escritor e pianista Hans von Bülow,  de 1874, a traduzir  a obra de Leopardi, ou nas palavras de Bülow, traduzir a prosa  do grande irmão romântico de Artur Schopenhauer. Dizia-lhe precisar de um pensador que lhe fosse próximo e afim (Bülow apud Lucchesi, 1996, p. 19).  Nietzsche, apesar da admiração pelo Poeta italiano, segundo Lucchesi (1996, p. 20), declina do convite, por não dominar de todo a língua italiana. Conhecia-o em tradução e sentia-lhe o peso da existência.
A aproximação entre Nietzsche e Leopardi  é imensa. É, contudo, em relação a crítica da história, que encontraremos essa aproximação de forma mais contundente.


3 O progresso  e a Felicidade: Crês que, de fato, a espécie humana vai melhorando a cada dia?
O gênero humano, segundo Leopardi  afirma no Diálogo de Tristão e um amigo (1996a, p.450), acredita sempre, não na verdade, mas naquilo que é  ou parece ser mais verdadeiro aos seus propósitos. A busca da felicidade passa então a integrar essa ânsia de sentido na história. É pois nesse referido diálogo que o amigo pergunta de forma irônica: Crês, então, na perfectibilidade indefinida do homem? (1996a, p.451) E Tristão responde: Sem dúvida. O Amigo Indaga: Crês que, de fato, a espécie humana vai melhorando a cada dia? (1996a, p.452) Ou ainda, pergunta o Amigo: Como conseqüência, acreditas que este século seja superior a todos os passados? (1996a, p.453). E finalmente, Tristão parece despertar quando afirma:
...digo-lhe francamente que não me submeto à minha infelicidade, não baixo a cabeça ao destino e nem faço acordos com ele, como todos os outros homens; ouso desejar a morte e almejá-la acima de qualquer coisa com tanto ardor e tanta sinceridade como creio firmemente que ela é apenas para pouquíssimos homens no mundo ( Leopardi, 1996a, p. 455).
Nesse caso, a história  deverá ser pensada como alternância de dor e felicidade. A idéia de progresso  associa-se à idéia de felicidade que passa a ser denunciada pelo poeta Leopardi.  É no Zibaldoni, contudo, que Leopardi (1996e, p.593) apresenta mais substancialmente a crítica da história e da  felicidade. Inicialmente temos a crítica da eternidade;
A hipótese da eternidade da matéria não seria objeção e esses pensamentos. A eternidade, o tempo, coisas que foram tão discutidas pelos antigos, não são, conforme observaram os metafísicos modernos, nada mais do que o espaço, do que a expressão de alguma idéia nossa, relativa ao modo de ser das coisas, e não coisas ou seres, como pareciam considerar os antigos ( Leopardi, 1996e, p. 593).
Segue-se a essa crítica a desconstrução da felicidade associada à história.
Em muitas outras coisas, o desenvolvimento, o progresso, a história do gênero humano assemelham-se à do indivíduo, como uma figura que, ampliada representasse a mesma em menor tamanho, mas entre outras coisas, a seguinte. Quando os homens desfrutavam alguma felicidade ou uma infelicidade menor que a presente, quando perdendo a vida perdiam algo, arriscavam com maior desprendimento                   ( Leopardi, 1996e, p. 594).
É esse ponto-chave da crítica da história que, a partir da  idéia do risco,  aproxima Leopardi e Nietzsche.  Essa idéia  encontra na possibilidade do acaso a contraposição ao reino  dos fins e da vontade. Nietzsche ( 1983f, p. 89), no Aurora, mostra que o acaso  é desprovido de sentido. E Foucault ( 1986, p. 28), ao  analisar a história em Nietzsche no texto Nietzsche, a genealogia e a história,  publicado no Brasil na Microfísica do poder, mostra-nos que é preciso
Compreender  este acaso não como um simples  sorteio, mas como o risco sempre renovado da vontade de potência que a todo surgimento do acaso opõe, para controlá-lo, o risco de um acaso ainda maior. De modo que o mundo, tal qual nós o conhecemos não é essa figura simples onde todos os  acontecimentos se apagaram  para que se mostrem, pouco a pouco, as características essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último; é ao contrário uma miríade de acontecimento.
4 Genealogia  ou Teleologia?
Buscando os dissabores  do tempo é que se encontra, nas entranhas das tempestades, os significados  múltiplos e, ao mesmo tempo, as diversas utilidades  de uma determinada coisa, gênero ou ideal de verdade.  O instituído axiológico  vivido na história  emana  de acasos,  vielas e descaminhos  de uma rota não traçada  e de um sentido sem sentido. Todas as utilidades, conforme NIETZSCHE  ( 1983a, p. 308) demonstra na Genealogia da moral,  são apenas  sinais de que uma vontade de potência se tornou senhora de algo menos poderoso e, a partir de si, imprimiu-lhe o  sentido de uma função.
É, então, que a história inteira de uma determinada coisa  ou de um órgão pode ser  simplesmente uma continuada  série de signos  de sempre novas interpretações  e ajustamentos (NIETZSCHE  1983a, p. 308).  A história  passa, então, a seguir caminhos já traçados pelo desenvolvimento de um a priori  pleonasmicamente  teleológico.
Faz-se então necessário  desconstruir  o dito, revisitar os lugares e os signos da história; por mais sagrados  e onipotentes que pareçam, por mais justos e nobres que os conceitos se apresentem, o seu sentido foi imprimido em postulados rígidos fixados  nas gôndolas que transportam conceitos eternos. A genealogia aparece como necessidade de reparação de um dano  que fora causado à história  com a rigidez de uma mão de ferro.
A genealogia segue o múltiplo e o diverso.  Encanta-se com os segredos. Caminha passo a passo nas pegadas meticulosas  e nas vielas mais estreitas. Rescreve os códigos de honra,  reabilita o anti-herói. Apraz-se  no desdém  do nada. Ajunta os pedaços  do tempo. Devolve  os lamentos  e os prantos funestos  de ritos e símbolos. Galopa nos sinais  já quase apagados pelo tempo,  pois o tempo não é dado, é reinventado. Conforme  relata NIETZSCHE no Humano demasiado humano  ( 1983b, p. 92), tudo veio a ser; não há fatos eternos: assim como não há verdades absolutas.
Nesse caso,  a crítica ao sentido da história justifica-se contra  toda e qualquer desdobramento do “espírito absoluto” e Nietzsche ( 1983c, p. 68), nas considerações extemporâneas II – Da utilidade e desvantagem da história para a vida,  chega a ironizar  com o divino hegeliano, quando afirma  que
...essa história entendida hegelianamente  foi chamada com escárnio e perambulação de Deus sobre a terra, Deus este que entretanto, por seu lado, só é feito pela história. Esse Deus porém tornou-se, no interior da caixa craniana de Hegel, transparente  e inteligível para si mesmo e já galgou os degraus dialéticos do seu vir-a-ser, até chegar a essa auto-revelação (Nietzsche 1983c, p. 68).
É que, para Nietzsche (1983c, p. 69) está mais do que no tempo de avançar contra os descaminhos do sentido da história, contra o desmedido gosto pelo processo. Todavia,  essa crítica encontra a complementação  no método filológico, considerado um método crítico que procura fazer falar o que permanece mudo. É na Genealogia da Moral  que esse procedimento se torna transparente. É na primeira dissertação  que Nietzsche (1983a, 299) mostra esse procedimento: 
Todo respeito, pois, pelos bons espíritos que  possam  reinar  nesses historiadores da moral! Mas o que é certo, infelizmente, é que o próprio espírito histórico lhes falta (...). A incompetência de sua genealogia da moral vem à luz logo no início, quando se trata de averiguar a proveniência do conceito e juízo “bom”.
Diriam então os historiadores da moral que o conceito bom  tem na origem  as ações não - egoístas , louvadas e/ou denominadas boas  ou que, simplesmente, pudessem ser louvadas como boas  de acordo com a utilidade de seus criadores. Essa idéia acaba  reproduzindo um desenvolvimento ou meta na história, em que o bom  é o que produz a compaixão e a piedade dos outros.  Nietzsche desconstrói   essa idéia, mostrando  que os “genealogistas” procuraram o foco no lugar errado.
O juízo “bom” não provém daquele a quem foi demonstrada  a bondade! Foram  antes “os bons” eles próprios, isto é, os nobres, poderosos, mais altamente situados e de altos sentimentos, que sentiram e puseram a si mesmos e a seu próprio fazer como bons, ou seja, de primeira ordem, por oposição a tudo o que é inferior, de sentimento inferiores, comum e plebeu (Nietzsche, 1983a, p. 290).
Ao demonstrar  que a produção de conceitos é um ato de disputa, segue-se a idéia de que esses mesmos conceitos não são, não podem e não devem ser tematizados como eternos. Ao contrário, são suscetíveis de  reinvenções, devendo, portanto, ser revistados.  A produção de conceitos deve então ser entendida em meio ao grande emaranhado da história gestada  em jogos de força.  Conforme assinala Foucault (1986, p.25), o grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar  daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto.
É  seguindo esse jogo de forças  que  poderíamos pensar: se os nobres geram os conceitos, poderíamos encontrar a resistência nos escravos. Nietzsche discorda dessa idéia. Os escravos  construíram uma moral  fundada na piedade e na compaixão. É o que Nietzsche denominou moral do ressentimento, que efetivamente não conseguem se opor à produção de conceitos gerada pelos nobres. Segundo Nietzsche (1983a, p. 302)
O homem do ressentimento não é nem fraco nem ingênuo, nem mesmo honesto e direto consigo mesmo. Sua alma se enviesa; seu espírito gosta de escaninhos, vias dissimuladas e portas dos fundos, tudo o que é escondido lhe apraz como seu mundo, sua segurança, seu refrigério; ele entende de calar, de não esquecer, de esperar, de provisoriamente apequenar-se, humilhar-se
O homem do ressentimento vive a sua desgraça  justificada  no mundo exterior. Busca um culpado pelas adversidades de sua vida. Sua ação é sempre através de reação. Necessita de estímulos externos para sobreviver.  Diante da possibilidade de construir o seu caminho, ele procura reagir  a partir  do culpado  ou de um possível culpado pela sua dor, ao invés de voltar-se para si próprio e construir o seu caminho.      

5 Memória e História em Leopardi e Nietzsche: sonho, lembrança, esquecimento e dor

A utilização da memória  como possibilidade de recomposição do passado, ligado à consciência  de temporalidade,  insurge-se no pensamento de Nietzsche (1983a) como desconstrução de um possível sentimento de prazer imanente à história.  A pergunta lançada  na  Segunda Dissertação da Genealogia da moral -  Como se faz  no animal –homem uma memória? Ou então, Como se imprime algo a esse em parte embotado, em parte estouvado entendimento de instante, a essa viva aptidão de esquecimento, de modo que permaneça presente? As duas perguntas  elaboradas neste texto de  Nietzsche (1983a, p. 304), na realidade, já apresentam uma inseparabilidade entre lembrança e esquecimento.  A resposta nietzscheana   tem  sua origem naquele instinto que  advinha na dor o mais poderoso meio auxiliar da mnemônica.
Giacomo Leopardi ( 1996f, p. 186), em um poema  Sobre o monumento a Dante, – que se preparava em  Florença, afirma com meio século de antecedência em resposta à mesma questão proposta por Nietzsche:
Por que nos são os tempos tão cruéis?/ por que o nascer nos deste ou, mais atrás,/ Não nos deste o morrer,/ Destino amargo? Vendo de infiéis/ E estranhos nossa pátria serva e escrava/ E uma lima mordaz/ Roendo a sua força, uma saída,/ Um  mínimo conforto/ À dor malvada que a dilacerava/ Jamais lhe permitiste desfrutar.
Ou ainda em outra poesia, composta nos meses de agosto e setembro de 1829, quinze anos antes do nascimento de Nietzsche. Nessa poesia intitulada As lembranças, Leopardi (1996g, p. 248) verseja:
Recordo-me, este som, nas minhas noites/ Quando, menino, eu vigiava o escuro/ De terrores assíduos, suspirando/ pela manhã. Pois não há coisa alguma/ Que um veja ou sinta sem que dela surja/ Uma imagem ou doce remembrança./ Doce por si; porém com dor assoma
Em um fragmento de 7 de outubro de 1823, do Zibaldone, Leopardi ( 1996e, p. 669) mostra a relação da dor com o tédio e, principalmente, a impossibilidade de o homem experimentar o verdadeiro prazer. Nesse caso, sempre que o homem não  experimenta prazer algum, experimenta o tédio, quando não experimenta a dor, ou melhor um desprazer qualquer.
Ora, se a memória é fixada pela dor, o homem deve encontrar canais que possam abreviar o sofrimento e a infelicidade. O sono é apresentado por Giacomo Leopardi ( 1996e, p. 681)no Zibaldone, em um fragmento de 28 de novembro de 1821 como uma  imagem do fim da vida. E o suicídio seria contra a natureza? Leopardi ( 1996e, p. 680) responde com uma pergunta. Que natureza? Essa nossa atual? E responde:
...nossa verdadeira natureza, que em nada se relaciona à dos homens  do tempo de Adão, permite, antes, exige o suicídio. Se  nossa natureza fosse  ainda a primeira natureza humana , não seríamos infelizes, e isto, inevitavelmente e irremediavelmente; e não desejaríamos, antes, aborreceríamos a morte (Leopardi 1996e, p. 680).
É desse ponto que poderemos pensar a importância do esquecimento em Nietzsche e Leopardi. Para Nietzsche, em um texto de 1873, Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral (1983d), o sono  é a possibilidade de desvio da verdade sem que o sentimento moral possa impedir. Contudo, é somente pelo esquecimento que o homem algum dia pode supor uma verdade. Para Nietzsche ( 1983c, p. 58), esquecer é imprescindível. É possível viver  quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente  impossível, sem esquecimento, simplesmente viver. O esquecimento, fazendo parte da vida, integra-se  no limiar do desprazer onde seleciona-se e/ou evita-se os eventos e acontecimentos  capazes de promover a dor ou alegria/felicidade. Para Nietzsche (1983c, p. 58), todo agir requer esquecimento: assim como a vida de tudo o que é orgânico requer não somente luz, mas também  escuro.
Em Leopardi ( 1996e), a dor é algo presente na vida e o homem busca formas de escapar à dor e ao tédio através do sono,  suicídio, esquecimento ou do silêncio, conforme Vasconcelos (1998).  Isso não implica que a paixão deva ser suprimida. No Zibaldone, fragmento de 22 de outubro de 1820, encontramos a seguinte asserção:
Não é necessário suprimir a paixão por meio da razão, mas converter a razão em paixão; fazer com que o dever, a virtude, o heroísmo, etc. se tornem paixões. Assim  o são por natureza. Assim  o eram entre os antigos e as coisas corriam muito melhor. Mas quando a única paixão do mundo é o egoísmo, então é racional que se insurja contra a paixão. (Leopardi, 1996c, p. 597)

6 Conclusão

O elo entre esses dois pensadores é inegavelmente muito forte. Certamente  a paixão que une os dois filólogos  ultrapassa a  temporalidade. O risco  da vida reintegra-se  no risco que acabo de correr  quando me propus estudar os elementos nietzscheanos e leopardianos da história e da memória. Essa é uma discussão inicial, porém apaixonada. Pelo estilo  de Leopardi, pelo modo intempestivo com que a filosofia de Nietzsche se apresenta no mundo atual. É necessário mergulhar  também de forma apaixonada  nas vielas e entrelinhas  desses gênios da humanidade, pois,  segundo Leopardi (1996c, p. 597),
 ...o homem desprovido de paixões não se moveria por elas, nem mesmo pela razão, porque as coisas são assim e não se pode mudá-las, porquanto a razão não é força viva nem motriz, e o homem acabará por tornar-se indolente, inativo, imóvel, indiferente, apático, como se tem tornado em grandíssima parte.

7 Bibliografia


FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986, pp. 15 – 37.
LEOPARDI, Giacomo. Diálogo de Tristão e um amigo/ Opúsculos Morais. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996a. Pp. 449 – 456.
_____. Diálogo de Torquato e Tasso e seu gênio familiar/ Opúsculos Morais. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996b. Pp. 353 – 362.
_____.Cântico do galo silvestre/ Opúsculos Morais. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996c. Pp. 415 – 418.
_____. A Si mesmo/ Variações Leopardianas. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996d. P. 972.
_____. Zibaldone. . Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996e. Pp. 549-690.
_____. Sobre o monumento a Dante/ Poesia. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996f. P. 183-188.
_____. As Lembranças Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996g. P. 247- 251.
LUCCHESI, Marco. Carta para um jovem do século XX – Introdução geral. In. Giacomo Leopardi. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. Pp. 11 – 23.
MACHADO, Roberto. Zaaratustra – tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
_____. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
NIETZSCHE, Friedrich.  Para a genealogia da moral. São Paulo: Abril Cultural, 1983a.  (Coleção Os Pensadores).
_____. Humano, demasiado humano. São Paulo: Abril Cultural, 1983b.  (Coleção Os Pensadores).
_____. Considerações extemporâneas. São Paulo: Abril Cultural, 1983c.  (Coleção Os Pensadores).
_____. Sobre a verdade a a mentira no sentido extra moral. São Paulo: Abril Cultural, 1983d.  (Coleção Os Pensadores).
_____. A Gaia ciência. São Paulo: Abril Cultural, 1983e.  (Coleção Os Pensadores).
_____. Aurora. Porto : Rés, 1983f
_____. O Crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelos. São Paulo: Hemus, 1976.
_____. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
VASCONCELOS, José Gerardo. Educação e ciência na pós-modernidade: atalhos do poder ou vontade de verdade? In. Cadernos da Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará. (mestrado e doutorado) – Correntes Modernas da Filosofia da Ciência.  Nº 10, (org) José Gerardo Vasconcelos. Fortaleza: UFC, 1998.2, pp. 7-14.
_____. Memórias do silêncio: militantes de esquerda no Brasil autoritário. Fortaleza: EUFC, 1998.




        


[1] Professor Associado III do Programa de Pós-Graduação em  Educação Brasileira  da Universidade Federal do Ceará; Editor-Chefe da Revista Educação em Debate da  Faculdade de Educação da UFC; mestre  e doutor em Sociologia e pós-doutor em Artes Cênicas.
[2] Friedrich Wilhelm  Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 na cidade de Röcken, próxima a Leipzig. Aluno-modelo, era chamado pelos colegas de escola de “pequeno pastor”. Morre em 1900, na cidade de Weimar.
[3] Nasceu em Recanati, em 29 de junho de 1798,  no então Estado Pontifício das Marcas. Filho do Conde Monaldo Leopardi e da Marquesa Adelaide Antici. Morre em 14 de junho de 1837, com 39 anos, vitimado por um ataque de asma e hidropsia cardíaca , numa casa em Vila Ferrigni. Ao seu lado, encontrava-se o seu amigo Ranieri. Foi sepultado  na Igreja de São Vital, em Fuorigrotta. Em sua lápide, encontra-se a inscrição feita pelo seu amigo Pietro Giordani: Ao Conde Giacomo Leopardi de Recanati/ filólogo admirado fora da Itália/ escritor de filosofia e de poesia  altíssimo/ a comparar-se apenas com os gregos/ o qual cessou aos XXXIX anos de vida/ em virtude de contínuas doenças terríveis/ fez antônio Ranieri/  durante sete anos até a extrema hora/ ao amigo adorado. MDCCCXXXVII). Deixou-nos os versos em número de 41,  4.526 páginas do diário que se intitulou Zibaldone.  Inúmeras cartas, além dos textos satíricos  contidos nos Opúsculos morais, dentre outros.    
[4] Machado (1997) procura relacionar o projeto de Assim falou Zaratustra com o Nascimento da tragédia de 1871, primeira obra de Nietzsche.
[5] Conferir sobre o assunto o livro de Machado ( 1999) e um artigo anterior de Vasconcelos ( 1998).
[6] Em 1820 tem a idéia de escrever  algumas composições satíricas que, posteriormente, seriam denominadas Opúsculos morais. Esse conjunto de textos é publicado em junho de 1827 pelo editor Stella. Entre junho e outubro inicia a compilação do índice do Zibaldone , que fora acrescido de novas correções como: Maquiavelismo e Sociedade, Aniversário, Amizade, Caráter, Educação, Egoísmo, Galateu moral, Juventude, Mundo, Simplicidade e Velhice.  
[7]Encontrava-se em Nápoles  em companhia de Antônio Ranieri e sua irmã. Tentava suportar uma dolorosa doença que o torturava por mais de cinqüenta dias. Encontrava em Nápoles algum alento,  pois o clima era considerado aprazível pelo poeta.  A tradução  de Júlia Cortines  é a seguinte: vais repousar p’ra sempre, ó meu cansado/ E triste coração./ Supus eterna, e, no entretanto, é morta/ Minha extrema ilusão./ É morta. Sinto bem/ Que não só de quimeras a esperança/ Está, dentro de nós, extinta, como/ O desejo também,/ Repousa para sempre. Palpitaste/ Bastante. Nada vale/ O teu afã , nem de suspiro é digna/ A terra. Nela o mal/ Impera, e não tem fim./ É tédio apenas a amargura da vida,/ E o mundo em que vivemos, lodo apenas, Acalma-te, por fim./ À nossa raça miserando o fado/ Um Dom único fez: O  dom  da morte. Desespera agora/ pela última vez. / Contigo envolve num igual desprezo a natureza toda, E a lei oculta e bárbara que rege / A miséria comum. ( Versos. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1894).  

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