quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

NA CADEIA TAMBÉM SE APRENDE A ESCREVER: REMEMORANDO A DIFERENÇA NO ESPAÇO CARCERÁRIO A PARTIR DA HISTÓRIA DE VIDA DO PROFESSOR FRANCISCO SIQUEIRA DE LIMA

NA CADEIA TAMBÉM SE APRENDE A ESCREVER: REMEMORANDO A DIFERENÇA NO ESPAÇO CARCERÁRIO A PARTIR DA HISTÓRIA DE VIDA DO PROFESSOR FRANCISCO SIQUEIRA DE LIMA
JOSÉ GERARDO VASCONCELOS
1     Introdução
O escopo do presente estudo é analisar a história, memória e ação da diferença, que se consubstanciam  no processo educacional ocorrido no final da década de 1980, no Instituto Penal Professor Olavo Oliveira – presídio masculino situado em Fortaleza –, comandado por um grupo de vinte e três detentos, no qual um deles merece atenção especial: Francisco Siqueira de Lima. Era reincidente, pois havia cumprido pena nos principais presídios do Rio de Janeiro, na década de 1970 e início da década de 1980.
Interessa-nos destacar a versão mnemônica do processo pedagógico desenvolvido no interior do referido presídio por um membro do grupo dos  vinte e três – como eram conhecidos – e, ao mesmo tempo, investigar as possibilidades de deslocamento de sentidos na constituição da diferença no espaço carcerário.  
Nesse período, o referido presídio era denominado Caldeirão do Diabo. Essa conceituação deve-se, principalmente, aos movimentos moleculares de detentos que, organizados ou não em pequenos grupos, atuavam no cotidiano carcerário, impedindo um processo organizacional mais amplo dos internos como vinha ocorrendo em outros presídios do País. Esses movimentos não levavam em conta alguns códigos elementares dos presos que se constituíam em grandes presídios e, muitas vezes, cometiam atos considerados ilícitos pelos próprios detentos como: estupros, assaltos aos internos e seus familiares, e extorsões.
Vale ainda destacar que a cadeia, embora abrigue, na sua maioria, indivíduos com baixa escolaridade, não pode servir como base para uma possível homogeinização, ou seja, nem todo preso é analfabeto. É nesse campo que se pode entender o papel do ex-presidiário Francisco Siqueira de Lima, que nasceu no dia 21 de fevereiro de 1949,  concluiu os “velhos” primário, ginasial e científico.
Lembro-me dos colégios que estudei. Lembro de todos. Quando eu fui à escola pela primeira vez eu contava 8 anos. Eu me lembro porque o meu cabelo só foi cortado aos 7. O motivo foi uma promessa que minha mãe fez com São Francisco das Chagas do Canindé (...)No velho ginásio São Francisco, hoje Colégio São Francisco. Estudei lá quatro anos. Fui aprovado e conclui o ginasial. Eu tenho até hoje guardado de lembrança o convite da época, com o nome do patrono. (...) Tinha direito a uma festa lá no Clube de Regatas da Barra do Ceará, com o Ivanildo e seu conjunto. Nunca me esqueci. Foi uma coisa memorável para a nossa mentalidade. Nós todos crianças e toda aquela festa[1]
A memória exalta e destaca elementos-chaves que se expressam na oralidade. Marcam os pontos que se fixam em volumes de lembranças prontas a emergir dos escaninhos mais profundos de sua alma. Conforme Benjamin (1994, p. 37), o mais importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração. Esse tecido é fixado pelo presente ou conforme Bergson ( 1990):
Meu presente parece ser algo absolutamente determinado, e que incide sobre o meu passado. Colocado  entre a matéria que influi sobre ele e a matéria sobre a qual ele influi, meu corpo é um centro de ação, o lugar onde as impressões recebidas escolhem  inteligentemente  seu caminho para se transformarem em movimentos efetuados; portanto representa o estado atual do meu devir (Bergson, 1990, p. 114).
Para tal, há que se pensar o lugar da oralidade na pesquisa. A memória é aqui tematizada como um olhar metodológico possível  sobre a história recente. Não nos convém, nesse caso, utilizá-la  como mero apêndice da história documental. Não é a verdade o centro de nossa investigação, pois entendemos que os elementos subjetivos e certas deformações produzidas pelo esquecimento devem ser incorporados teórica e metodologicamente à pesquisa, não como um problema mas, principalmente, como possibilidades de deslocamentos e incorporação de sempre novos sentidos. Conforme Ferreira ( 1994, p. 10). As distorções  da memória podem se revelar mais um  recurso do que um problema, já que a veracidade dos depoimentos não é a preocupação central.
É nesse universo metodológico que se situa essa pesquisa. Foram gravadas 20 horas de fita,  no final de 1999, com o senhor Francisco Siqueira de Lima.   Ex-presidiário, poeta e militante de Direitos Humanos da Pastoral Carcerária do Ceará. As fitas foram transcritas com o auxílio de bolsistas do PIBIC, e o resultado foi reorganizado em processo de transcriação em que a fala foi decodificada, reorganizada e classificada a partir de conteúdos espaciais e temporais. Aqui se apresenta um breve resumo dessa pesquisa. Dividimo-la, para melhor exposição, em duas partes: na primeira, abordaremos o processo pedagógico ocorrido no interior de grandes presídios do Rio de Janeiro, quando se faz pungente o contato dos presos comuns com os militantes comunistas recolhidos na década de 1930 e no pós-1964.  Lançamos em processo de desconstrução a possibilidade de se deslocar sentidos e, conseqüentemente, quebrar as binárias segmentaridades, para utilizar uma expressão de Deleuze & Guattari(1996). Em  seguida, trafegaremos pelo interior do presídio Instituto Penal Professor Olavo Oliveira para relatar a experiência inédita de alfabetização dos detentos realizada por outro preso.   
2- A Pedagogia Carcerária no Entorno da Marginalidade: Experiências, Sentidos e Códigos Deslocados
A organização de detentos no interior dos cárceres situa-se ao longo da história das prisões no Brasil. Essas organizações não constituem práticas homogêneas,  tampouco podem ser referendadas como sinais de conscientização política. É, todavia, de bom alvitre informar que a possibilidade de articulação no interior de instituições totais sobrepõe-se aos ritos oficiais, podendo, nesse caso, escapar através do subterrâneo da vida marginal que, em muitos casos, pensa na inviabilidade dessas práticas. É nosso intuito rever aqui alguns conceitos que se foram avolumando ao longo da história e se encaixam em supostas racionalidades fixadas nos campos da história. Há que se pensar em possibilidades outras ou deslizes conceituais que se podem deslocar e, ao mesmo tempo, fazer transmudar sentidos outrora fixados nas suas eternidades.
A cadeia como lugar de punição e vigilância atende aos conflitos de múltiplos matizes, encetando ritos de crueldade sob os corpos condenados e retirados do convívio social. O processo pedagógico carcerário, resultante de recomposições moleculares e marginais, podem, ao mesmo tempo, insurgir-se contra a institucionalidade da pena, traçando vielas ou linhas de grandes intensidades propulsoras de minúsculos campos de liberdade no interior da prisão. É nesse sentido que poderiam ser entendidos alguns processos organizativos nessas instituições totais. Como na década de 1930, o contato com presos políticos revela-se de grande significado para os reclusos comuns. É, na realidade, a ampliação e o reconhecimento de direitos que se estabelecem, fazendo-os ressoar pelas grades e paredes dos presídios. São reivindicações que se vão enraizando a partir de contatos travados entre presos políticos e presos comuns. De acordo com os estudos de Lima,
...aqui no Brasil, por exemplo, a massa carcerária extraiu muitas lições do contato havido na década de 1930 com os membros da Aliança Nacional Libertadora encarcerados na Ilha Grande. Quando os presos políticos se beneficiaram da anistia que marcou o fim do Estado Novo, deixaram nas cadeias presos comuns politizados, questionadores das causas da delinqüência e conhecedores dos ideais do socialismo (Lima, 1991, p.27),
Esses contatos ampliaram-se no pós-1964. Todavia, as diferenças se sucedem e, em determinados momentos, emergem nas reivindicações as possibilidades de travarem caminhos alternativos. Cercados de alguns cuidados, os presos comuns demarcam o seu campo. É como se pode observar na fala de Lima(1991, p. 48), ao se referir ao grupo - posteriormente denominado Comando Vermelho - que se inicia na prática da organização carcerária do temido presídio da  Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Lá os coletivos entram em disputa. Os presos comuns lançam manifesto que respondia a outro manifesto dos presos políticos, este intitulado: “Existem 30 Presos Políticos na Ilha Grande”, com o manifesto: “ Somos 90 Presos Proletários”. O termo proletário é aqui apresentado como um jogo de contestação situado na diferença e, ao mesmo tempo, utilizado como uma categoria que se expressa com forte conteúdo político. Não se trata aqui de simples distinção entre o plano de expressão e o plano de conteúdo como propusera Hjelmslev (1985). É um deslocamento de sentido do termo  “proletários” lançado contra os defensores dos “proletários” que, estando presos, adquiriam privilégios enormes. Queixavam-se os presos comuns das prerrogativas dos presos políticos consubstanciadas e amparadas nas ações dos grupos militantes de direitos humanos. O sentido pode ser deslocado. Esse deslocamento não se concentra apenas no plano da superfície, tampouco movimenta-se no seu aspecto contraditório. Há que se pensar a diferença – de acordo com os estudos de Deleuze sobre Bergson (1999, p.36) -  como diferença de natureza  independente de toda forma de negação (...). É que a negação implica sempre conceitos abstratos, demasiadamente gerais. É nesse sentido que a dialética se torna insuficiente, demasiadamente lógica, racional e abstrata, para capturar os movimentos  moleculares da realidade. É nesse campo que se inscrevem as possibilidades de deslocamentos que vazam e escapam da zona de potência do poder e da norma. 
Do ponto de vista da micropolíica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares. Sempre  vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, a máquina de sobrecodificação: aquilo que se atribui a uma “evolução dos costumes” ( Deleuze, 1996, p. 94).
Esse descontentamento dos presos comuns extrapola o locus da reclusão e, ao mesmo tempo, constitui-se e consubstancia-se em linhas de ação da diferença ( Orlandi, 2000). O preso deve organizar-se e reivindicar melhores condições de existência. Essa ação pedagógica  pode fazer escapar às identidades marginais  e jorrar pelo interior de suas experiências moleculares uma ação subterrânea de extrema  eficiência. Já no início na década de 1980, no presídio da Água Santa, no Rio de Janeiro, surge um manifesto, citado por Lima, redigido por presos (1991, p. 41) que, na construção de suas reivindicações, asseguravam em denúncia:
As celas estão superlotadas. Em cada xadrez moram, em média 30 homens. As ralas espumas com que forram o chão, além de estarem impregnadas de insetos daninhos, não são suficientes para todos. Na maioria dos casos, dorme dois homens em cada espuma. Para mantermos a higiene somos obrigados a comprar desinfetantes  sabão com o nosso próprio dinheiro, pois nada disso a casa concede. Improvisamos panos para a faxina com pedaços dos cobertores. A água só é aberta três vezes ao dia. Não é permitido nenhum tipo de comunicação de um xadrez com o outro, por mais necessária que seja. A casa não dá nenhum tipo de ocupação. Se procurarmos fazer algum tipo de trabalho de artesanato, pagamos preços absurdos pelo material, comprado aqui na cantina. Estamos em Água Santa como se estivéssemos sepultados vivos.
Francisco Siqueira de Lima chega no Presídio de Água Santa em 1975. De acordo com suas lembranças, relatadas em entrevista, de forma extremamente desprazerosa pelo temor que causara o referido presídio e, ao mesmo tempo,  a espera  de um lugar que oferecesse condições ou pelo menos mais espaço de sobrevivência, ele refere:
Nós chegamos lá em 75, no presídio de Água Santa. Toda semana a POLINTER manda uma carrada - como eles chamavam - uma carrada de vagabundos.  Aquele caminhão grande que lá o pessoal chama de coração de mãe, porque sempre cabe mais um. Então toda sexta-feira a gente ficava naquela expectativa. Porque na Água Santa a gente sabia que pelo menos teríamos o café, o almoço e a janta  e,  na POLINTER,  não. Lá a comida era de 24 em 24 horas.
A chegada ao presídio da Água Santa foi acompanhada de um estereótipo marginal de mendicância. Os relatos de Lima corroboram:
...cabeludo, barbudo, imundo, fedendo e só com uma bermuda velha com uma cueca por baixo, um desespero. A gente começa a não gostar da gente mesmo. Lá tinha quatro ou  cinco presos que trabalhavam na barbearia, com a máquina elétrica para raspar a cabeça de todo o mundo no zero. Os percevejos  que escapam do veneno morre na máquina. Em seguida  todo mundo vai para uma cela grande. Todos os 50 ficava umas, duas ou três noites lá. Só que a característica do bairro de Água Santa é um bairro muito frio, porque é um pé de morro, e a própria natureza trata de congelar.  Os internos passam três noites no frio. O Paulão,  que era o diretor era tão pilantra que não aparecia na sexta-feira para não fazer a distribuição dos presos, (eram separados por artigos) ou para não jogar inimigo contra inimigo. Ele não ia na sexta-feira para passar mais o sábado e o domingo. Quando a gente ia ser distribuído para as celas, as unhas da gente já estavam roxas de frio.  Você fica ali sem  um cobertor, sem uma  almofada.  Você não tem nada, era no cimento, lá era cerâmica. Cerâmica gelada e você só de cueca, fazíamos tudo que era de movimento para esquentar e não tinha jeito. Era uma  coisa terrível.
Francisco Siqueira de Lima foi preso, juntamente com um companheiro, pela primeira vez, em flagrante, no ano de 1975, no Rio de Janeiro. Foi acusado de assalto, formação de quadrilha e resistência à prisão.  Após um longo percurso por várias delegacias  do Rio de Janeiro, que não os recebiam em razão das más condições físicas em que se encontravam, pois foram torturados em excesso no percurso que se iniciara no local da captura, torturas que se prolongavam até a delegacia mais próxima. Por essa razão, nenhum delegado os queria autuar. A saga do presidiário inicia-se. De acordo com o seu depoimento:
Fui apanhado quase no Largo da Carioca. Jogaram-me na caçamba do camburão e me algemaram para trás -  pés e mãos algemados. Colocaram-me dentro de uma viatura e me levaram paro o pátio da Estação da Central do Brasil. Com  mais ou menos uma meia hora, eles chegaram trazendo o Milton. Outra viatura, outra turma prendeu o Milton lá da Praça 15 também.  Trouxeram o Milton e nos  colocaram dentro da mesma caçamba. E  ai foi pancada,  foi pancada. A  sessão de pancadaria  reiniciou-se dentro do carro. Eles nos deixavam imobilizados e quem tinha fuzil segurava no cano e saía batendo com a coronha, quer dizer, você se protegia aqui mas a pancada pega na tua perna, pega na tua costela, pega no teu cotovelo, pega na tua cabeça, aonde pegar pegou não escolhem o lugar. Eles eram muito cretinos.
Após percorrer vários presídios do Rio de Janeiro, contrair duas tuberculoses, presenciar várias rebeliões e fugas de companheiros, o nosso informante cumpre a pena que lhe foi cominada pela Justiça do Rio de Janeiro e descreve a saída da cadeia com 33 anos, após 8 anos e 8 meses em estado de reclusão.
(...)fiquei naquela expectativa, até a hora que,  coincidentemente acontece -  foi num dia de visita. Um amigo lá de São Cristóvão tinha ido me ver. Foi lá só para me ver,  levar um cigarro para eu fumar e bater um papo. Ele já sabia que eu ia para liberdade e ele foi embora mais cedo. Eu não voltei para cela, fiquei no pátio brincando com os filhos de uns amigos meus. De repente o alto falante anunciou que eu tinha que comparecer lá no setor de segurança e disciplina.  Aí veio toda aquela emoção. Dá um nó na garganta, companheiros te cercam logo – aproveita bem, boa viagem...
3 Aqui eu Aprendi  Alguma Coisa Boa, eu Aprendi a Escrever
Uma vez vivi uma situação que me emocionou muito  - relata o nosso informante -    Eu estava bem tranqüilo nos meus afazeres carcerário e um amigo me procurou e disse:- Siqueira a Dra. Sandra – Diretora do Presídio - está  te chamando no gabinete dela. Eu  fui e ela disse que um rapaz que estava indo para liberdade gostaria de falar comigo. Eu o parabenizei e ele me falou: - Seu Siqueira , eu  vim preso aqui  na besteira 155, furto simples, e eu não sabia nem assinar meu nome.  Está aqui o meu prontuário com meu “dedão” – impressões digitais- e aqui eu aprendi a alguma coisa boa, eu aprendi a escrever.  Lá fora minha mãe vai ficar muito feliz em saber que outro preso me ensinou a botar meu nome.
Esse relato contraria os postulados rígidos de uma instituição carcerária. Para Foucault ( 1986b, 136), a prisão não reforma, mas fabrica a delinqüência e os delinqüentes. Temos ainda a assertiva que envolve o espaço disciplinar com os seus respectivos controles de espaço e de tempo; um tempo disciplinar que, para Foucault (1986a p.145), se impõe pouco a pouco à prática  pedagógica. Ou cria uma espaço de localização e quadriculamento (Foucault, 1986a p. 131).
Há que se perguntar pela possibilidade de deslocamento imiscuído nas ações do cotidiano para além da zona de potência ou fortalecida do poder. Pode-se pensar, conforme Deleuze ( 1996, p. 108), em uma zona de impotência , relacionada com os fluxos e quantas que ele só consegue converter, e não controlar nem determinar. É nesse sentido que um código, signo ou lugar pode apresentar-se como o seu outro ou outros. É nesse caso que se pode entender que de acordo com Orlandi ( 2000, p. 57) - quando se refere a ( logique du sens) lógica do sentido de Deleuze (1969, p. 68-69) - toda forma é um composto de relações de forças, de modo que a pergunta pela forma implica a pergunta  pelas forças relacionadas.
É bem verdade que essa proposição já está presente no pensamento de Nietzsche. Na Genealogia da moral, Nietzsche ( 1999, p. 19), ao analisar a genealogia do bom, afirma:  o juízo “bom” não provém daqueles aos quais se fez o “bem”! foram os “bons” mesmos, isto é os nobres, poderosos, superiores em posição e  pensamentos, que sentiram e estabeleceram  a si e a seus atos como bons. Isso implica dizer que a constituição de um signo lingüístico é trespassada por jogos de forças. Ou, como observa Foucault (1986c p. 25) o grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto.
Aqui reside a possibilidade de revisitar conceitos, reerguer os ritos. O presente trafega pelos tentáculos da história. Amarrá-los aos pontos de razão que classificam novas e velhas epocalidades  passa a ser, sem  rodeios, destituição da história efetiva. Cria-se, nesse caso, para além da história, muitos sentidos para os acontecimentos. O presente vai escapando e filtrando a história da não-história.  E o que não é história? Código de silencio; gesto que possa transgredir o dito histórico; documento não autorizado; poema obsceno grafado nas paredes de uma prisão, manicômio, convento ou escola; emblema decomposto; signo lingüístico inventado; amores proibidos; paixão desmesurada; escritos apócrifos; invalidade da honra? A história entra em cena em meio a jogos de força. É uma representação cuidadosa do que passou nos presentes transmudados e decodificados. A ponta de um sentido encoberto pode abrigar múltiplos caminhos e percursos somados aos sacrifícios históricos. Os acontecimentos, de que se trata nessa pesquisa, revelam-se como possibilidades de se deslocar ou escavar sentidos; remoê-los à luz do acaso ou re-significá-los  no calor das lutas  
Sendo assim, podem ser pensados outros sentidos para uma instituição carcerária, inclusive como uma instituição a servir de abrigo a experiências pedagógicas que escapem também às formalidades da pedagogia tradicional.
O movimento  que resultou em uma nova pedagogia no cárcere inicia-se no final da década de 1980. Francisco Siqueira de Lima estava novamente recolhido em uma instituição carcerária. Desta vez, na sua cidade. Estava condenado por assassinato que cometera  motivado pela defesa da honra.  Aqui se trata de uma crime passional com grande repercussão nos media locais. Referido crime deve-se ao assédio de um conhecido corretor de imóveis da região à filha de um amigo de Siqueira.
Tive que tomar o carro da mão dele. Coloquei-o no porta- malas com uma grande brutalidade. Fui até ali na confluência da Jurema com Conjunto Ceará e cometi o assassinato. Para se ter uma idéia até que ponto chega a crueldade humana - eu não nego isso. De lá eu fui com ele dentro da mala do carro, depositei  o corpo nas  proximidades  do aeroporto e deixei o carro na Aerolândia.
Esse é o relato do crime e, por isso, a condenação e o recolhimento no Instituto Penal Professor Olavo Oliveira. No referido presídio, comanda um movimento de pacificação e, em meio a esse movimento, negocia com a direção do presídio a possibilidade de alfabetizar detentos que assim o quisessem. As aulas são iniciadas com muita expectativa por parte dos detentos e da direção do presídio. Conforme relata o nosso informante:
Comecei dando as aulas a partir da linguagem deles. Engraçado que eu nunca tinha escutado nem falar em Paulo Freire. A coisa começou a funcionar,  acho eu, que era porque eu os tratava com muita liberdade. O meu método concreto era da nossa própria cultura, a própria linguagem deles, nada daquele negocio de B com A é igual a BA. O meu negócio era que eles conseguissem, pelo menos, assinar o próprio nome. Fui ensinando devagar. Mas o que  eu gostaria mesmo  era poder sair do campo formal da língua para a esculhambação, que era concreta.
Em  uma semana – segundo o depoimento - eles sabiam ler e escrever algumas palavras. Inicialmente essas palavras não eram tão sublimes, mas expressavam a linguagem do detento:  ( puta que pariu, cu e etc.) Só a partir daí foram aprendendo a escrever o nome. De acordo com o depoimento  - Quando eu vi o primeiro que escreveu o seu nome completo eu fiquei com os olhos cheio de lágrimas,  e ele todo contente.
Os próprios alunos passam a procurar a “escola”.
Quando uma turma já estava perto de terminar, outra já estava se formando. Eles próprios passavam a nos procurar. Para mim isso era algo muito bom espiritualmente. Nesse meio tempo, os agentes penitenciários começavam a achar graça. O dia de terça feira era muito legal, todos levavam um cigarrinho e ficavam pensando o que poderiam dizer para suas famílias na  quarta, que era o dia de visita.
O horário das aulas – conforme explica o professor - era totalmente flexível.
Tinha casos em que uns vinham avisar que não poderiam comparecer. Os motivos eram os mais diversos.  Diziam: - Siqueira, minha visita não veio ontem; não estou a fim de assistir aula, hoje; não afoguei o ganso ainda;  estou é puto, vou é tomar um comprimido para dormir. Eu liberava legal. Os agentes chamavam a nossa escola de Escola do Professor Raimundo, porque era muito divertida.
Entretanto, o movimento que estava dando certo sofre o primeiro grande e último ataque que levaria ao seu encerramento. A imprensa toma conhecimento do movimento de alfabetização do IPPOO e resolve fazer uma matéria. O problema é que resolveram fechar a referida matéria na sala do Secretário de Justiça ao alegar que o movimento fazia parte de um programa da Secretaria de Justiça. Isso revoltou os seus organizadores que resolveram cessá-lo.
Fiquei indignado. Aquilo era o mesmo que dar um soco no meio da minha cara.  Os meus companheiros que estavam ali disseram:  - Siqueira isso é muita sacanagem, que secretário safado, bicho sem vergonha, os meninos rasgaram mesmo ele de palavrão. Sabe o que é você se sentir mal depois da reportagem.  Os meninos começaram a fazer hora comigo dizendo que eu estava sendo treinado por fora. É o seguinte: a partir de amanhã não tem mais aula.  Os alunos então disseram: - o que é isso cara, nós vamos parar por causa disso? Eu disse: - não, vamos terminar essa turma, vamos terminar! Tem o pátio aqui próximo da carpintaria. Tem o salão – com espaço vazio - que podemos ficar. Vamos treinando de dois em dois , três em três, até terminar. Após isso, não darei mais aulas.
 4 Conclusão
O instante é a alteração da eternidade. A imagem de perfeição desfeita. A intocável totalidade é maculada em sua ordem pelo caos e o lodo que, desencantado no sublime ponto de configuração da eternidade,  faz emergir códigos necrosados da perfeição que foram fixados pelo discurso oficial. Perde-se então o sentido de plenipotência  configurado no telos anunciado da perfeição. As normas são desfeitas, e o cenário, arrumado cuidadosamente para abrigar o teatro da história, é, também, desfeito pela força e intensidade do instante. A história efetiva escapa aos códigos e lugares sagrados. Os sentidos se deslocam da mesma forma que os acontecimentos podem ruir para abrigar novos sentidos que, reunidos, podem ser desfeitos ou refeitos. Nesse caso, não se deve deixar de incluir o acaso na história. Suas lutas, seus campos de força  ou indulgências.
É nesse terreno movediço e escorregadio que se pode pensar a cadeia, não somente como um lugar de destituição da humanidade mas, também, como um locus de escolarização. Pode-se, assim, quando se parte da micropolítica,  entender as diferenças que participam da vida e da história. Um preso, assassino e ladrão, pode ser um poeta e um professor.
5 Bibliografia
BERGSON, Henri. Matéria e memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 204p.
BENJAMIN, Walter. A Imagem de Proust. In. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. P. 36 – 49. 
DELEUZE, Giles. GUATTARI. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 120 p.
_____. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999. 144p. ( Coleção TRANS).
FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: um inventário das diferenças. In. Entre-vistas: abordagens e usos da história oral. Ferreira, Marieta de Moraes (org). Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1994. P. 1- 13.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1986a, 280p.
_____. Sobre a prisão. In. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986b  p. 129 – 144.    
_____. Nietzsche, a genealogia e a história. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986c  p. 15- 38. 
GUIMARÃES, César. Imagens da memória – Entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997, 249p.
HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Abril Cultural, 1995. P. 177 – 213. (Coleção Os Pensadores).
LIMA, Wiliam da Silva. Quatrocentos contra um – Uma história do Comando Vermelho. Petrópolis: Vozes, 1991. 108p.
LIMA, Francisco Siqueira de. Entrevistado  na Faculdade de Educação da UFC, nos meses de novembro e dezembro de 1999. 150p.
NIETZSCHE, F. Genealogia da moral – Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras , 1998. 179p.  
ORLANDI, Luiz B.L. Linhas de ação da diferença. In. Gilles Deleuze: um vida filosófica. Rio de Janeiro, Ed.34. p. 49-64.


[1] Entrevista realizada na Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Ceará, nos meses de  novembro e dezembro de 1999.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

MANOEL HENRIQUE PERIERA, VULGO BESOURO MANGANGÁ E O DISCURSO POÉTICO DA MORTE


José Gerardo Vasconcelos[1]
Esse trabalho é parte dos estudos de pós-doutoramento desenvolvidos junto a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia em 2002, sobre o discurso poético constituído em torno do capoeira mais famoso da região do Recôncavo Baiano. Nascido provavelmente em 1895 e falecido em 8 de julho de 1924. Abordaremos aqui algumas versões sobre a morte de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordão de Ouro ou Besouro Mangangá na constituição de um mito popular.
Tem-se a transmutação da morte em vida eterna. Imagem do corpo deslocado da temporalidade. Símbolo de coragem ou quem sabe composição poética de uma força pura da natureza participando de todas as rodas imaginárias da cultura negra. Um ponto de resistência capaz de ressoar no corpus poético do filho querido de ogum ao capoeira moderno que canta a valentia do mestre Besouro gingando em novos campos de teatralidade e, ao mesmo tempo, dançando a malícia de um jogo que reúne as artes do espetáculo apesar do limite despendido pela transitoriedade humana.  A morte poderia encerrar o ciclo biológico da vida.  
Entretanto, toda morte representa um renascimento. Um lugar em que, nas consciências arcaicas, as experiências elementares - segundo MORIN (1970, p. 103) – são das  metamorfoses, das desaparições e das reaparições, das transmutações, toda morte anuncia um renascimento. Nascimento e perecimento participam do mundo, alternâncias de bem e mal, transmutações de signos que derrapam nos interstícios do tempo e clamam pela eternidade. MORIN (1970, p.103) nos lembra que
O conceito cosmofórico primitivo da morte é o da morte-renascimento, para o qual o morto humano, imediatamente a seguir ou mais tarde, renasce num novo vivo, criança ou animal.
É que o homem “não” pode tão imediatamente morrer. Em casos excepcionais, determinados indivíduos continuam muito mais do que vivos. É vida que efetivamente encontra sentido em outro tempo ou em outra comunidade discursiva, que passa a selecionar eventos e acontecimentos que tornam o mundo humano consciente de sua transitoriedade. Desloca-se ao sempre novo recomeçar e integra-se ao divino mundo da imortalidade. Formam-se os mitos com a força suficiente para saltar o tempo. De acordo com ELIADE (1991, p.54),
Um mito retira o homem de seu próprio tempo, de seu tempo individual, cronológico, “histórico” – e o projeta, pelo menos simbolicamente, no Grande Tempo, num instante paradoxal que não pode ser medido por não ser constituído por uma duração. O que significa que o mito implica uma ruptura do Tempo e do mundo que o cerca; ele realiza uma abertura para o Grande Tempo, para o tempo sagrado.
É neste lugar sagrado que se pode reverter o limite da humanidade, torná-la simples ou demasiadamente humana. Não é à toa que estudar os mistérios da morte, de acordo com CASSORLA (1991, P. 18),
Por mais que se queira fazer ciência, acaba impelindo o autor para o terreno da poesia. O pesquisador e os pesquisados, com freqüência, são obrigados a utilizar figuras poéticas para poder expressar o indizível ou o inefável.     
O homem quer torna-se o animal de si mesmo, revelar-se o animal que mesmo é; um animal que é capaz de deitar o olhar por sobre o outro e devorá-lo pela pura e simples capacidade de trespassar a cultura pela satisfação da crueldade. Para muito além da “eterna” “bondade” humana, existe um animal ou muitos animais humanos que escapam as organizações binárias e, ao mesmo tempo, lança suas linhas de fuga que se vão articulando a sempre novas linhas de fuga, que são moleculares. Como nos mostra DELEUZE (1996, p. 94): sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa as organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação.
Besouro é um desses animais poéticos que transmuda o tempo de desterro e reencontra em linhas de fuga da temporalidade um outro modo de dizer o seu tempo. Uma zoopoética intercala-se entre tantos pontos que se fazem necessários para compor um corpus estendido para muito além dos nossos limites  temporais.
Esse animal é capaz de prometer. É DERRIDA(2002, p.15) quem nos lembra o início da segunda dissertação da Genealogia da moral de NIETZSCHE (1998, P. 47): criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? E complementa: A natureza ter-se-ia dado como tarefa criar, domesticar, “disciplinar” (beranzüchten) esse animal de promessas. Esse animal que promete a felicidade, a eternidade e a verdade e, como toda eternidade, pode ser vazada pela força que se instaura imiscuída no jogo de promessas na história ou quem sabe no próprio sentido do jogo da vadiação ou da capoeiragem.  
É nesse jogo que Besouro, feito imortalizado, pela força de sua ação, com a arte da malandragem, o filho de querido de Ogum é incapaz de, simplesmente, morrer. Ele necessita ir muito além do inefável. É um corpus enigmático, uma tempestade de força e de resistência; uma sempre nova possibilidade de guerra e de combate que se renova para vazar o seu tempo.
É que Besouro é uma estrela, uma estrela grande, que ilumina todos os tempos e encontra no infinito o céu e a terra. De acordo com AMADO(1973, 126-127), As mulheres dizem que ele está espiando os malfeitos dos homens (barões, condes, viscondes, marqueses) de Santo Amaro. Está vendo todas as injustiças que os marítimos sofrem. Um dia voltará para se vingar.
De nada adiantaria colocar a polícia contra ele. Não importava a quantidade de homens. Todos seriam destruídos pelo rabo-de-arraia, rasteira e cabeçada braba. Em alguns casos, o recurso da surra de facão, ou quem sabe, a navalha no pé poderia ser utilizada no jogo da capoeiragem.  Ele voltará para se vingar. Deve voltar como muitos homens do mar, reivindicando direitos, outras leis e igualdade social.  Essa poética literária que AMADO (1973) entoa como um cântico, uma récita, uma beberagem capaz de embriagar, no silêncio, os mortais que se tornam ávidos e sedentos pela beleza discursiva reencontra a visibilidade da história, encobrindo um enorme campo retraído do invisível. É nesse terreno que CALVINO (1990, p. 21) informa que a poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nasce de um poeta que não nutre qualquer dúvida quanto ao caráter físico do mundo. Besouro cantado, entoado, versejado ou descrito pela literatura; Besouro tomado de empréstimo como um nome dado ao capoeira é também físico.
Mestre Burguês (1986:32) conta que certa vez Besouro estava desempregado e saiu em busca de trabalho. Conseguiu emprego na Colônia Santa Rita. No dia do pagamento, sabia que havia um costume do patrão de chamar só uma vez e, na segunda, dizia que havia “quebrado para São Caetano”. Isso significava dizer que o empregado não receberia. Não havia possibilidade de reclamar. Se o fizesse, era imediatamente espancado como correção pela audácia. Esse costume – imposto pelo patrão – era sinal de força e orgulho. Era comentado nas festas e rodas dos senhores de engenho da região.  Conta mestre Burguês, que:
Besouro no dia do pagamento deixou que o patrão lhe chamasse duas vezes. Todos receberam naquele dia, menos Besouro. Então invadiu a casa do patrão pegou-o no cavanhaque e gritou: Pague o dinheiro de Besouro Cordão de Ouro. Paga ou não paga? E o patrão com as mãos trêmulas  ordenou que lhe pagasse o devido e o mandasse embora. Besouro tomou o dinheiro e andou. 
Narra ainda BURGUÊS (1986: 33) que Besouro foi se empregar na fazenda do Dr. Zeca, o qual tinha um filho genioso que logo se desentendeu com Besouro.
O fazendeiro tinha um amigo que era administrador da Usina Maracangalha de nome Baltazar. Mandaram então Besouro entregar uma carta. Baltazar recebeu a carta, leu, e disse para Besouro esperar pela resposta até o dia seguinte. No outro dia Besouro, quando foi buscar a resposta, viu-se rodeado por uns 40 homens armados. As balas nada fizeram contra ele. Um homem matou-o a traição com uma faca. Só assim é que puderam acabar com Besouro e sua saga de homem valente.
Outra versão dentre tantas apresentadas sobre a morte de Besouro corrobora esta descrita pelo mestre Burguês. REGO (1968:265) descreve um possível desentendimento entre Besouro e Dr. Zeca (Jeca) e, ao mesmo tempo, amplia com a inclusão do filho Memeu, que entrou em desentendimento com Besouro. 
Mandaram então uma carta para Baltazar, pelo próprio Bezouro, pedindo ao administrador que desse fim do Besouro por lá mesmo. Baltazar recebeu a carta, leu, e disse a Besouro que aguardasse a resposta até o dia seguinte. Besouro passou a noite na casa de uma mulher da vida; no outro dia foi buscar a resposta. Quando chegou na porta foi cercado por uns 40 homens, que o iam matar. As balas nada fizeram; um homem o feriu à traição, com uma faca. Foi como o cosseguiram matar.
A linguagem poética de VIEIRA (2001:13) sobre a morte de Besouro refere-se ao castigo aplicado ao filho do dono da usina. Besouro teria feito o jovem Memeu – filho do patrão - montar em um burro brabo, como forma de punição e justiçamento aplicados por Besouro. Isso foi motivo suficiente para o patrão mandar executar Besouro Cordão de Ouro. 
E o rapaz que não tinha/ traquejo com montaria/ Mal montou e foi pro chão/era assim que acontecia/ No burro, mal se montava/ Ela todo se encolhia/ Burro de primeiro salto/ Derrubava e não saía. O rapaz adoeceu/ Seu pai ficou irritado/ Não atirou em Besouro/ pois tinha o corpo fechado/ então tramou sua morte/ Com jagunço contratado/ não demorou, o serviço/ Foi logo executado (VIEIRA 2001:13-14)
Raimundo José das Neves, Mestre Macaco, 36 anos, 28 de capoeira. Iniciou seus estudos de capoeira com Mestre Ferreirinha, na década de 1970. Entretanto, teve que mudar para a Regional - no horário das aulas do mestre Ferreirinha, Mestre Macaco estava na escola. Concluiu o ensino médio e, no momento atual, é um profissional da capoeira, em Santo Amaro da Purificação-BA.
Informou-me Mestre Macaco ao se referir à história da morte de Besouro Cordão de Ouro, sobre uma determinada usina em Maracangalha - zona canavieira – que o proprietário tinha o hábito de deixar de pagar aos trabalhadores, alegando que havia quebrado para São Caetano – padroeiro da Usina.
Ao saber dessa história, Besouro, que gostava de tomar o partido dos desfavorecidos, alistou-se na referida usina. Na segunda semana, quando foi receber o salário- relata Mestre Macaco - com os outros funcionários, o patrão disse que havia quebrado para São Caetano. Mestre Macaco afirmou:
Besouro segurou o patrão pelo cavanhaque, neutralizou os outros capangas e fez com que o salário dele e dos outros fossem pagos. Nesse mesmo dia tinha dado uma surra no filho desse proprietário de terra, próximo a usina de Maracangalha. Ele se desloca para Santo Amaro e quando passa um período ele volta para rever as mulheres de programa que ele conhecera. Ele tinha um chamego daquele lado. Essa mulher foi paga, teve a relação sexual com ele. Nesse caso quebrou os encantos que ele tinha. Foi tudo já armado. Quem pagou isso foi esse proprietário que ele tinha dado uma surra.
Mestre Macaco analisa o conflito que se instaurou em torno da morte de Manoel Henrique muito mais do ponto de vista político, embora inclua a versão do corpo fechado, da faca misteriosa e da mulher que passou a noite com Besouro. Amplia a versão incluindo a personagem que fora contratada pelo usineiro. De acordo com o Mestre, o rapaz contratado era muito mais novo do que ele, talvez nem fosse maior de idade.
Foi preparada uma outra tocaia. Contam que quando ele atravessou a cerca a camisa rasgou-se. Ele falou que não estava no dia dele. Quando ele chegou nas proximidades do bar, foi feita a emboscada e, segundo contam, ele foi perfurado com uma faca preparada para esse tipo de situação, que é a faca de Ticun. Besouro mesmo assim caminhou e foi trazido de Maracangalha - em uma canoa - até Santo Amaro.  Chegando em Santo Amaro, na Santa Casa de Misericórdia não houve muito interesse em atende-lo. Ele tinha muitos inimigos e ele morre no hospital.   
Esse relato aproxima-se ao do mestre João Pequeno, com a diferença de que o discípulo de Pastinha concentra mais sua versão em torno da mandinga quebrada quando Besouro mantve relação sexual no período que deveria obrigações aos orixás. João Pequeno assinala que seu pai era primo de Besouro. Todavia insiste na idéia de que o corpo fechado pode ser quebrado quando esse corpo se encontra sujo pela sexualidade. Pessoa de corpo sujo são as que têm relações sexuais, eles estão despreparados e com o corpo aberto a qualquer luta, e foi aí que aproveitaram do finado Besouro (PEQUENO, 2000: 17).
O Mestre insiste na versão do corpo sujo proporcionado pela impureza da atividade sexual. Relata o acontecimento que antecede a morte de Besouro:
Ele dormiu na casa de uma mulher no outro dia quando ele vinha para a casa passando debaixo de uma cerca de arame, o arame arranhou nas costas dele e ele chamando disse: “estou mal, se qualquer pessoa me atacar hoje estou perdido”. E foi nesse dia que furaram ele em uma briga, que durou o dia inteiro. Então, o capoeirista que usa essas rezas não pode ter relações sexuais senão perde o efeito (PEQUENO, 2000: 17).
Mestre Dimas relata o fato a partir de histórias que ouviu e de pesquisa realizada por ele na região. Garante que Besouro estava bebendo em uma venda, não sabe exatamente onde. Tinha acabado de retornar de alguma festa ou da casa de alguma mulher. Isso mantém a versão do corpo aberto pela sexualidade. Nas palavras do Mestre, ele era justiceiro e os senhores de engenho não gostavam dele. Um misto trafega entre um campo político e outro que se expressa na religiosidade e nas obrigações com os santos protetores.
Ninguém podia disputar na mão com ele – quem era doido de sair na mão com Besouro ou na faca. Não tinha jeito. E ele vinha de uma tradição de jogar com a navalha do pé. Ele tinha a sina dele – a mandinga – que não poderia ter relações sexuais em determinados dias. Tinha o dia certo.
Foi então que apareceu no local um garoto que estava contratado para atacar Besouro. Essa mesma versão aparece no discurso do Mestre Macaco. 
Alguém deu a faca de Ticum. O garoto estava preparado para mata-lo. Brincou com o garoto que, inesperadamente, sacou da faca e furou Besouro. Cortado caiu, gofando, bebendo o próprio sangue. O ticum além de cortar, solta uma tinta que infecciona. O Garoto furou e logo fugiu. Ele que estava com o corpo aberto, tinha acabado de ter relações sexuais com a tal mulher.
Mestre Dimas argumenta que Besouro foi levado para o hospital. Entretanto, embora fosse um negro muito forte, não resistiu à distância e à falta de socorro da Santa Casa de Misericórdia. 
Da Usina de Maracangalha até Santo Amaro é muito longe. Ele ainda resistiu. Entretanto sua fama era muito grande, os proprietários automaticamente foram ao hospital e dificultaram ou impediram o socorro. Se fosse prestado socorro de forma adequado – ele era muito forte – teria escapado. Foi perdendo muito sangue e veio a falecer.
Mestre Atenilo, em entrevista concedida ao Mestre Itapoã (Raimundo César Alves de Almeida ), ilustra a possibilidade de criação. Nesse relato já transmitido por outros capoeiristas, Besouro morreu em Cumbaca. Morreu com uma facada. Todas as versões são categóricas em afirmar que foi facada. Nesse aspecto, encontro unanimidade, o que se encaixa perfeitamente com o documento expedido pela Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, no relato organizado por ALVES (1988: 48), o entrevistado – Atenilo – diz que Besouro, mesmo furado, não morria. Ele era um além-humano. Não poderia morrer de qualquer jeito. Uma morte simples não seria tolerada. Caberá ao mito – no mínimo – uma morte espetacular.  
Ele não morria, porque ele depois de furado, dizem, ele meteu a mão na faca e cortou os intestinos, ele cortando e comia. E ele vivo, até quando levaram ele pró hospitá, quando chegou no hospitá o médico disse: se ele não tivesse cortado os intestinos...
Mestre Itapoã pergunta novamente, como se quisesse se certificar do que acabara de ouvir: Ele comeu os intestinos, que história é essa?- Mestre Atenilo responde: Ele cortava rapaz, era maluco, cortava um pedaço e botava na boca. Quando chegou no hospitá não tinha mais ar, o ar já tinha saído e ele morreu (...)Até ele não queria escapar.
Sr. Danilo do Acupe, 67 anos, assegurou, em entrevista concedida em 16.06.2002, que Besouro tinha o corpo fechado. Mas o afilhado dele encontrou o ponto fraco. Pegou o Mestre no dia fraco; no dia em que ele estava desprotegido pela atividade sexual. Não tem mandingueiro que resista. Além disso, Cordão de Ouro foi furado com uma faca de ticum, que é a árvore dos mistérios.
Dia de sexta-feira o homem não pode ter relação com mulher. Besouro caiu porque o afilhado o ajeitou, pegou o dia fraco dele e ajeitou ele com uma faca de que? De Ticun. Não tem mandingueiro que resita. Só basta bicar, só basta tocar. Aquele que tem um espinho, que dá aquela frutinha.
Mesmo tendo passado a noite com uma mulher não haveria problema. Sr. Danilo é categórico em afirmar que só pela mulher Besouro não seria derrubado. Besouro é vítima da inocência. A potência transmudada em maldade. Besouro morre no da 8 de julho de 1924. De acordo com o calendário de 1924, o dia 8 de julho é uma terça-feira, que segundo VERGER (1997) é dia dedicado a ogum. Coincidência ou não a possibilidade de articulação entre sexualidade, mandinga, corpo fechado preenchem de possibilidades a linguagem poética.
Foi o menino – afilhado – que estava com maldade com ele. O que contam é que Besouro foi traído pelo afilhado. Isso ocorreu na toga do saveiro. O menino ficou esperando. Quando ele voou já era tarde. O punhal já tinha cravado nele. Caiu no próprio barco. Quando o cara botou nele, já estava preparado. Ali tem um veneno. O ticum solta um veneno. Quando botou nele acabou o homem
A irmã de Besouro– Dona Dormelina Pereira dos Anjos, Dona Adó, em entrevista gravada em Santo Amaro no dia 18.06.2002, garantiu que Besouro estava dormindo. Não entrou em detalhes sobre os motivos de sua morte. Provavelmente por causa de uma mulher. Ele estava dormindo. Mataram ele dormindo. Ninguém sabe quem matou. Morreu em Maracangalha. Contestou a possibilidade de Besouro estar em alguma festa ou bodega.  Foi uma morte construída pela força da traição.  Ao mesmo tempo integrou à linguagem poética dois arquétipos importantes da mitologia: o sono e a morte, que são irmãos gêmeos; filhos da noite, que habitam para muito além dos lugares que o Sol pode iluminar. São lugares onde os galos nunca anunciam a chegada da aurora, chorando o orvalho pela decrepitude de seu amado Titão. De acordo com MÉNARD (1991, p. 119),
(...) o falecimento, filho da noite, habita perto do sono, seu irmão. Este, amigo dos mortais, passeia calmamente no meio deles, na terra; mas o falecimento não conhece piedade e tem um coração de bronze. Nunca deixa o infeliz de que se apodera, e inspira horror aos próprios deuses imortais.
Besouro põe em conflito os dois irmãos. O sono que passeava livremente pela vida e rompeia o fio da existência com a traição e crueldade humana; do enfraquecimento da mandinga, movido pela força da sexualidade e, ao mesmo tempo, o que se torna indispensável - proteção ao mito. Nada poderia abatê-lo. Nem a força da mandinga, impureza, o ticum ou interferências políticas. Na realidade, é como se dissesse: só poderiam matar Besouro dormindo. Não haveria outra forma. O sono impediria a força do mito; imobilizaria a cabeçada, a navalha no pé, o rabo-de-arraia, a rasteira ou a surra de facão. Não haveria força humana disponível para detê-lo. Besouro só poderia morrer à traição.
Para AMADO (1973, p. 127): cortaram  seu corpo todo. Foi preciso catar os pedaços para o enterro. Mas, como poderia ser cortado à faca o ilustre filho de Ogun? Ele não poderia morrer de ferro. Temos ainda uma retaliação poética, uma mutilação que lembra o menino Dioniso. O ritual da criança cortada em postas pelos titãs e cozida no vinho, formando uma macabra beberagem e, ainda assim, escapou o divino coração do deus que renasceu na coxa de Júpiter. Pela força da paixão representada pelo coração, o deus-menino sobreviveu embriagando a todos em todos os lugares. Besouro trafega entre a vida e a morte como um deus que sempre viverá, porquanto é imortal.  
Besouro é Manoel Henrique Pereira - vaqueiro, mulato escuro, natural de Urupy, residente na usina de Maracangalha; dava entrada na Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro da Purificação – Bahia, como um ferimento perfuro-inciso do abdômen. Veio a falecer no dia 8 de julho de 1924 às 7 horas da noite, conforme registro na folha 42v. do livro n° 3, linha 16, leito 418, de entrada e saída de doentes. O referido documento consta nos autos do processo (PEREIRA 1920 –1927: 21) movido por Caetano José Diogo contra Manoel Henrique.
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Raimundo César Alves. (Mestre Itapoã).. Mestre Atenilo. O “Relâmpago” da capoeira regional. Salvador: UFBA, 1988. 61p.
AMADO, Jorge. Mar morto. São Paulo: Martins, 1973.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo : Companhia das Letras, 1990. 142p.
CASSORLA, Roosevelt M.S. Como lidamos como o morrer – reflexões suscitadas no apresentar este livro. In. Da morte – estudos brasileiros. Cassorla, R.M.S. (organizador). Campinas : Papirus, 1991. pp 17-23.
DELEUZE, Giles. GUATTARI.  Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 120 p.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 92p.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos – ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 178p. 
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana. São Paulo: Opus, 1991.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Portugal: publicações Europa-América, 1970. 
NIETZSCHE, Friedrich. Para a genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____.  Além do Bem e do Mal – prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_____. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
PEQUENO, João. Uma vida de capoeira. Salvador: [ s.e.], 2000. 48p.
PEREIRA, Caetano Cícero. Certidão de óbito. Cartório de Registros Civis de Pessoas Naturais. Comarca de Santo Amaro – Bahia. (2ª via, junho de 2002).
PEREIRA, Manoel Henrique. Seção Judiciária. Arquivo Público Estadual da Bahia. Classificação – 202; Cx 14; doc 18 – Período 1918.
PEREIRA, Manoel Henrique. Seção Judiciária. Arquivo Público Municipal da Santo Amaro.; Subsérie: Tentativa de homicídio; Cx.04; N° 104; Vol. 18. Data limite (1920 –1927)
REGO, Waldeloir. Capoeira angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968. 417p
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SANTO AMARO. Edição  comemorativa do bi-centenário. Bahia, 1978. 122p.
VERGER, Pierre. Orixás –  Deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Currupio, 1997. 295p.
VIEIRA, Antônio. O encontro de besouro com o valentão doze homens. Santo Amaro: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo da Cidade de Santo Amaro da Purificação, 2001. 17p. (Literatura de Cordel).
VIEIRA, Luis Renato. O jogo de capoeira: cultura popular no Brasil. Rio de Janeiro: Sprint, 1995. 




[1] Professor Associado III, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Ceará. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Filosofia Política, Especialista em Filosofia Política, Mestre e Doutor em Sociologia e Pós-Doutor em Artes Cênicas. Edita a Coleção Diálogos Intempestivos e a Revista Educação em Debate da FACED/UFC.

sábado, 21 de agosto de 2010

A DANÇA DO CONCEITO OU O CONCEITO DA DANÇA: PAIXÃO, EMBRIAGUEZ E DESMESURA NO TERRITÓRIO DO PRAZER





José Gerardo Vasconcelos[2]




O avesso da vida urbana. A cidade entrega-se ao descanso noturno enquanto muitos se lançam aos territórios de prazer. Lugares que se movimentam em seus percalços de civilidade. Lugares que guardam muitos outros lugares em territórios cindidos pela movimentação do acaso. Lugares que se vão formando nas conexões vibrantes que se deslocam entre tantos lugares. Lugares de temporalidade. Um tempo que se ergue nos escombros conduzidos pelo tédio. Uma frincha de tempestade pousa em nosso semblante para nos conduzir, inebriados e trôpegos, aos territórios de prazer.
Em algum prostíbulo da região central da cidade de Fortaleza, soa com intensidade o pulsar da música reverberando em nosso coração. Corredor estreito e seguranças plantados à porta de entrada de onde se podem avistar luzes díspares ao fundo. Ingressar nesse território desconhecido faz lembrar uma travessia assaz perigosa. Ao final do corredor, as luzes se misturam e circulam em vários feixes que embriagam o olhar. Os ouvidos são alertados pelo sabor da música. Corpos femininos se deslocando na distorção de uma intensa sonoridade que faz acelerar nossos sentidos e, ao mesmo tempo, invadem nossas entranhas com a paixão e a desmesura. É essa mesma paixão que inquieta Foucault (1986, p.18), quando põe em questão o método científico, destacando a paixão dos seus pares, suas discussões fanáticas e sempre retomadas, da necessidade de suprir a paixão.
O sabor feminino passeia pelo salão e exibe seus corpos e suas curvas sinuosas pelos becos que se vão formando entre as mesas distribuídas no referido espaço. Ao final do corredor estreito da entrada, seguindo um traçado retilíneo, desemboca-se no espaço do salão para que os olhos vislumbrem uma variedade de informações imagéticas. À esquerda, pode-se avistar um bar e o posto do caixa e em cima do balcão um operador de som. Entre o bar e um palco de exibição, um pequeno camarim e ao fundo do salão, antes de chegar a uma placa com o nome iluminado – MOTEL -, pode-se perceber, em meio a tantos outros, um jovem sentado em intensa solidão, com os braços recostados sobre a mesa. O que chama a atenção – além do volume corporal do referido indivíduo – é o tédio que amarga seu olhar. É o tédio que, segundo Leopardi (1996, p. 439), jamais se fundamenta no falso. O suor escorrendo pela testa e embebendo de calor a roupa vermelha já completamente encharcada. Como se procurasse algo, alguém ou alguma coisa. Como se tentasse uma passagem pela vida. Um lugar que fizesse sentido no mais vazio dos mundos que se formava no seu entorno. 
No palco de dois metros de diâmetro, avista-se a movimentação das dançarinas que se podem contratar dentre as várias mulheres que se apresentam no interior do recinto. O espetáculo é combinado previamente. O investimento pode variar de 10,00 a 50,00 reais. Duas músicas é o tempo de exibição. A primeira é apresentada no palco, que inclui um espelho ao fundo e um longo cano no centro. Percebe-se uma montagem do corpo para avivar a imaginação masculina. Fantasias diversas podem cobrir o corpo que logo será apresentado num misto de inocência e sensualidade. As tais fantasias podem ser de tigreza, colegial, enfermeira, policial ou simplesmente uma pequena saia e um minúsculo pano para guardar as bundas e os seios fartos das dançarinas.
Para SUQUET (2008, p.533), o bailarino sempre controla o centro de gravidade de seu movimento, daí a impressão de um domínio. No caso em questão, o palco é centralizado pelo cano de 2 metros de altura e 20 cm de diâmetro. Posições sensuais de agachamento participam o tempo inteiro do espetáculo. Encostar-se ao espelho e descer até o chão. Descer e subir no cano e, em alguns casos, de cabeça para baixo. Toda essa movimentação tem por objetivo retirar a fantasia cuidadosamente escolhida. Desmontar um mundo imaginário de uma personagem que desaba de sua forma e apresenta a nudez de seu corpo. Resta apenas uma pequena calcinha. Muitas vezes amarrada dos dois lados com laços que são facilmente desfeitos. A calcinha já desamarrada é puxada de um lado para outro passando entre o ânus e a vulva completamente raspada. Uma vulva que assiste aos mundos de olhares de desejo e emoção.
Em seguida, a bailarina desce do palco e invade a platéia se deslocando para a mesa dos investidores do espetáculo. Uma nova música. Desta vez, mais potente, preenche loucamente nossos ouvidos e um novo bailado se vai formando entre os olhos atentos de todos e, ao mesmo tempo, partilhado “exclusivamente” pelos que contrataram o show.
Ao longo do salão, várias mesas foram distribuídas. Pessoas sentadas no entorno das referidas mesas. Homens e mulheres que se misturam aos olhos sempre atentos dos seguranças. Mulheres nuas exibem suas formas arredondadas e passeiam pelo território do prazer. Homens sentados. Olhares perdidos de uns e a total atenção de outros que buscam – ao que parece – algum sentido para a sua própria existência. É como se não ouvissem a música que invade todo ambiente. É como se ensurdecessem ao clamor do bailado e cheiro feminino que embriagava de prazer a humanidade reticente e ávida de (des)contentamento.
As dançarinas, que eventualmente podem dividir o prazer sexual com os clientes que estão dispostos a pagar a modesta quantia de 30,00 reais em média, apresentam a sua insatisfação em relação ao espaço preparado para os momentos calorosos de amor. Dizem que as condições dos quartos não estão devidamente apropriadas para tal realização. Na realidade, um pequeno cômodo, com uma cama colada à parede fria e que preenche quase todo espaço desse território, deixando apenas um minúsculo corredor delimitado por outra parede. Um minúsculo banheiro como cheiro de pinho que penetra por todo recinto e invade nossas narinas. Um lençol desbotado pelo tempo, certamente testemunha de acolhimento de muitas noites de amor, com um leve cheiro de mofo, reveste a cama e embala os corpos dos amantes que, como dançarinos, inventam novo movimento como uma réplica do bailado que fora apresentado momentos antes para o público ávido de prazer. Circunspetos em silenciosos soslaios. Movidos pela força dionisíaca do espetáculo primal e, ao mesmo tempo, entediados pelo peso da existência que devem carregar até o fim de seus dias.  
Todavia, se o tédio pode ser entendido como ausência de sentimentalidade, passagem vazia pelo tempo ou simplesmente experiência do nada, a arte seria simplesmente a fuga do tédio. A motivação que permite a nós humanos suportar um mundo que dilacera nossos projetos e invade nossos sonhos. Nesse caso, como viver sem a arte e, particularmente, sem a música? Quão intensa seria a vida se a música nunca cessasse de pulsar e, evidentemente, se conectasse ininterruptamente aos nossos sentidos. Mas a música cessa. A arte cessa. E, nesse caso, poder-se-ia indagar pelo sentido da vida nos intervalos intermitentes proporcionados pela ausência da música e das artes. Como viver sem a música se ela nos faz pertencer ao mundo – ao âmago do mundo?
Eis que nos vemos diante do desafio. Viver sem o impulso necessário capaz de nos conectar ao coração do mundo sem deixar de ser senhor de si mesmo. O individuum torna-se divisível. Torna-se dividuum. A paixão mobilizadora e condutora de nossos segredos derrama seu cobiçado e inaudito distanciamento de si, dividindo o ser humano entre a paixão de si e a guerra ou tormenta de si. É que as necessidades de golpear o mundo e atingir seu coração conspiram em prol da desmesura do animal humano. É essa ação desmesurada de intempestiva força que nos fere, produz fissuras em nossas certezas e faz colidir nossos percalços vorazes, nossas derrapagens sagradas com o sentido mais acurado de nosso ocaso limítrofe. Ao erguer nossas pontes e nossos tentáculos para socorrer os últimos desnaturalizadores de nossas vidas, forma-se uma teia no submundo da nossa frágil racionalidade.
Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando, sair voando pelos ares. De seu gesto fala o encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem também soa algo de sobrenatural: ele se sente um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte (NIETZSCHE, 1998, p. 31).
Tornar-se obra de arte. Eis que o desafio faz acordar a humanidade com seus mais sinceros e secretos desejos. Eles se escondem em fluxos desmesurados de muitos instantes intermitentes que não se comprazem pelo tédio, mas aceleram a vontade de potência, invadindo nossa vida e fazendo saltar do peito a ternura que se esconde na força do êxtase dionisíaco. É que até os deuses podem dançar. A sincronia ritmada pelo compasso da dança nos leva ao âmago da vida e ao coração do mundo.
É seguindo essa trilha, tortuosa pela dissonância de um dançarino embriagado pelo complexo fluxo de temporalidade, entre passos e compassos, entre movimentos desarruamados ou produzidos nas entranhas da existência, que se vai formando o compasso de um corpo que dança, atraindo muitos olhos que admiram e miram o sexo de uma ninfa produzida pela força da juventude e firmeza de suas formas.
A embriaguez circula todo o espaço. Invade nossos poros. Embriaguez esta que está muito além da quantidade de álcool ingerida pelos partícipes da noite.  É o móvel que desloca nossos sentidos para reencontrar o centro do mundo e revolver as certezas, pelo encanto ou pelo escárnio que paira e/ou sobrevoa o recinto. Para Nietzsche, o dionisíaco possibilita uma analogia com a Embriaguez.
Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da embriaguez. (Nietzsche, 1998, p.30).
É que a embriaguez participa da vida humana qual um pedaço de existência que fora devorado e mutilado como o deus do vinho. O menino deus retalhado pelos titãs reencontra na coxa de Zeus o arcabouço necessário de sua existência. Livre como um dançarino que sobrevoa o mundo, deslocando seus pedaços para muito além de seus corpos que se conectam entre si.
Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação como seu filho perdido, o homem.
Dionísio, ao contrário do impulso apolíneo que encontra seu lugar na medida e longe do excessivo, é desmesura e intensidade. É que a razão necessita de paixão. Mesmo como divindade ética e, ao mesmo tempo, como retenção do princípio de individuação, Apolo não pode sobreviver sem a força do impulso dionisíaco. O lugar da desmesura torna-se fundamentalmente necessário ao ser humano.
Apolo, como divindade ética, exige dos seus a medida e, para poder observá-la, o autoconhecimento. E assim corre, ao lado na necessidade estética da beleza, a exigência do “conhece-te a ti mesmo” e “nada em demasia”, ao passo que a auto-exaltação e o desmedido eram considerados como demônios propriamente hostis da esfera não-apolínea, portanto como propriedades da época pré-apolínea, da era dos Titãs e do mundo extra-apolíneo, ou seja, do mundo dos bárbaros (Nietzsche, 1998, p. 40-41).
É que o êxtase dionisíaco invade nossos poros, aniquilando as barreiras e sansões da impostura humana. Tais sanções visam a uniformidade do ser humano unificando em torno de princípios éticos que na realidade são perfurados pelo sabor da passionalidade que alimenta a vida humana. Uma nova estética da existência vai se formando e arrebatando a desmesurada e a fragmentada estética da existência. Gera nesse descompassado espetáculo da vida como que uma letárgica sinopse de um enlevado compasso que se move em torno de um agora pungente. Rompem-se as dores do tempo. Ficam mudas as seqüelas que deformam nosso sentimento de culpa. O esquecimento é conclamado para invadir nossas entranhas e acelerar nosso coração.
O êxtase do estado dionisíco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados (Nietzsche, 1998, p. 55).
Ora, se o êxtase dionisíaco pode levar ao esquecimento das dores do passado e, ao mesmo tempo, escapar do tédio, da letargia e das sanções do cotidiano, há que se pensar que a necessidade de tal êxtase é fundamental para manter vivo o ser humano que não sobreviveria se isso lhe fosse negado. O problema consiste em canalizar o esforço de conexão com as pulsões vitais inerentes à vida humana e as normas desfechadas contra o ser humano pela cultura. È nesse território que o elemento dionisíaco se faz pulsar entre os corpos que se movimentam na dança, na música e no prazer sexual.
A dança potencializa-se na flexibilidade e exuberância dos movimentos que nada seriam sem a presença da música. Segundo NIETZSCHE (1998, p.100) ela proporciona o núcleo mais íntimo, que precede toda configuração, ou seja, o coração das coisas. A força dos movimentos de uma dançarina – isso inclui as dançarinas nos territórios de prazer – objetiva, dentre outras coisas, convencer os múltiplos olhares dos espectadores da eterna existência do prazer. Entretanto, não consegue se desvencilhar da presença do ocaso. Tudo se esvai na eterna rotatividade do tempo. O mais sólido ou o mais compacto se desmancha. A vida torna-se fugidia e a eternidade do êxtase se desfaz na plenitude de sua contingência. O legado da incompletude humana torna-se um sempre e novo estado transitório que dança com as surpresas do acaso. Para NIETZSCHE (1998, p. 101),
...somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo aniquilamento do indivíduo. Pois só nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para nós o eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão a vontade em sua onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a vida eterna para além de toda aparência e apesar de todo o aniquilamento.
Uma ultrapassagem de si. Aquilo que nos torna senhor de si, inclusive das próprias paixões. È que a passionalidade humana sempre viveu em estado de guerra. Todos os antigos juízos morais, segundo Nietzsche (1976, p. 33), estão de acordo em um ponto: é preciso destruir as paixões. É nesse terreno que a igreja combate as paixões – segundo Nietzsche (1976, p. 33-34) – através do método de extirpação radical; seu sistema, seu tratamento, é a castração.
Todavia, a extirpação da paixão é a destruição da vida. Atacar a raiz da paixão segundo Nietzsche (1976, p.34) é atacar a raiz da vida. Não se pode sequer imaginar o ser humano destituído de paixão. A tentativa desesperada de uma razão doente e miserável para conter a força da paixão, apesar de todos os postulados que objetivam o controle do ser humano, não se torna realidade.
Em seu livro Para além do bem e do mal, Nietzsche (1982, p. 47-48) lança um desafio.
Admitindo que nada seja “dado” como real a não ser nosso mundo dos desejos e paixões, que não possamos descer ou subir a nenhuma realidade que não seja a de nossos impulsos – pois pensar é apenas uma inter-relação desses impulsos: não será permitido experimentar e perguntar se aquele dado não chega para se compreender também, por analogia, o chamado mundo mecanicista... Admitindo enfim que se consiga explicar toda a nossa vida instintiva como o desenvolvimento e ramificação de uma só forma fundamental da vontade – da vontade de poder.
Isso nos movimentaria pela força da vontade de potência. Marcaria nosso corpo com o selo de nossa própria vontade. Com todos os riscos capazes de nos tornar a mais viva das criaturas sob a terra.
...admitindo que se possa explicar todas as funções orgânicas por esta vontade de poder e se encontre nela também a solução do problema da fecundação e alimentação – que é só um problema – ter-se-ia, assim, adquirido o direito de designar toda a força atuante, inequivocamente, como: vontade de poder. O mundo visto por dentro, definido e determinado pelo seu caráter inteligível, seria, precisamente, vontade de poder e nada mais. (NIETZSCHE, 1982, p. 48-49).  
Esse sagrado direito de dizer sim. De ir muito além do fardo que nos foi dado pela existência, seguindo, pela inocência, um sutil deslocamento para a vida humana. Que nos faz caminhar quando podemos correr. Que nos faz voar com a leveza da incompletude sem que a vida ao menos nos empurre por sobre um abismo. É que a paixão capaz de rachar o ser humano na constante tensão de nossa vontade nos bafeja com o solícito e implacável golpe da existência.
Entretanto, posso ir mais longe. Voar mais rápido. Correr pelo mundo. Aplainar pelo meu próprio desterro pela intensidade da vontade de potência, pela força da embriaguez dionisíaca e pelo calor da vida humana. Poder-se-ia conclamar nossos desejos para observar o bailado de uma dançarina que, deslocada de seu centro, movimenta suas formas para muito além da nossa medida. É que segundo Nietzsche (2007, p. 67)...
Agora, estou leve; agora vôo; agora, vejo-me debaixo de mim mesmo; agora um deus dança dentro de mim.
Assim falou Zaraturstra.

BIBLIOGRAFIA
FOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1986. pp. 15-37.
LEOPARDI, G. T. F. Diálogo de Plotino e Porfírio. In. Poesia e Prosa, Rio de Janeiro: Aguilar, 1996. 437-448
NIETZSCHE, F. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____. O Crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelo. São Paulo, HEMUS, 1976.
_____. Para além do bem e do mal. Lisboa, Guimarães Editora, 1982.
_____. Assim falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche – biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
SUQUET, Annie. O Corpo dançante: um laboratório da percepção. In. História do Corpo – as mutações do olhar – o século XX. Direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello. Petrópolis: Vozes, 2008. pp. 509-540.




[1] Conferência apresentada no IV Seminário de Arte e Educação – Círculos de Cultura de Paulo Freire organizado pelo grupo Cordão do Caroá nos dias 23 a 28 de Setembro de 2008, na universidade Federal do Ceará.
[2]Professor Associado III, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Ceará. Licenciado em Filosofia, Bacharel em Filosofia Política, Especialista em Filosofia Política, Mestre e Doutor em Sociologia e Pós-Doutor em Artes Cênicas. Edita a Coleção  Diálogos Intempestivos e a Revista Educação em Debate da FACED/UFC.