sábado, 21 de agosto de 2010

A DANÇA DO BÊBADO: EMBRIAGUEZ E TEATRALIDADE NA ARTE DA CAPOEIRAGEM



José Gerardo Vasconcelos[1]
Eu acreditaria somente em um deus que soubesse dançar.
(Nietzsche)

1 INTRODUÇÃO
Arte da esquiva. Possibilidade de ataque desfeito e refeito pela circularidade de novo movimento que encontra o tempo correto para ser encaixado no ventre do adversário. Todavia, o capoeira ausente da piedade cristã, em frações de segundos, muda o desfecho do movimento. Ataca, demonstra sua habilidade e resolve não acertar. Sabe que pode bater e não faz porque não quer. A simulação e teatralização da luta é parte de uma dança. Um jogo gingado entoado pelo canto e pelo coro animado. Um jogo que dança na malícia da roda. É o entusiasmo e o êxtase do deus do teatro que no contexto da capoeiragem é capaz de dançar. É Dioniso quem comanda a roda e o cenário de uma embriaguez vigilante e atenta aos mínimos movimentos e intenções do outro.
É com o pé que se bate, não é com a mão. É a possibilidade de descansar na bananeira em plena luta que se desenrola na trama constituidora da capoeiragem. O molejo do gingado baila com a sonoridade dos berimbaus. Astuta na possibilidade de cair e integrar-se aos pontos descobertos de um outro dançarino que joga na esquiva e no ataque. É dança na roda. A dança que lança armada, esquiva na cocorinha e invade a guarda do outro com o martelo de dentro devolvido pelo rabo de arraia que na esquiva retorna mais veloz com a rasteira abençoada. Dobrada com mobilidade de um Au aplica a vingativa - Quem nunca caiu não é capoeira.
O cenário marcado pela alegria de uma embriagante paixão. Imiscuída na preparação de articulações poéticas que entoam o canto da tradição afro-descendente. Revisitando outros cenários e outras rodas com os feitos dos heróis da vadiação. É provável que essa mnemônica poética explique a arte de criar movimentos bailados no cenário da brincadeira e deslocados pela eficiência da potência que se lança contra o outro. É que a capoeira além, de ser tudo que a boca come, conforme diria mestre Vicente Ferreira Pastinha apud Sodré (1999, p. 16), é, ao mesmo tempo, maldade. É o que nos diria mestre Bimba. De conformidade com os estudos de Sodré (1999, p.16):
Apesar da aparente incongruência destas definições elas não conflituam. Complementam-se e refletem diferentes postulados do negro brasileiro diante dos vários problemas de sua existência. Para mestre Pastinha, querido pela sua personalidade cativante, dignidade e grande saber, capoeira era tudo o que a vida lhe oferecia, aceitando filosoficamente o bom e o ruim, inclusive sua condição humilde, cegueira e velhice como dádivas e castigos divinos merecidos. Para mestre Bimba, respeitado pelo seu carisma, criatividade e estatura na preservação de uma das mais expressivas manifestações da cultura afro-brasileira, capoeira era um estado de vigília constante, uma arte que lhe permitia enxergar os perigos e injustiças da vida, ao mesmo tempo em que lhe oferecia uma estratégia de como lidar com eles.
A complexidade da capoeira é marcada pela desconstrução de limites da corporeidade traduzidos na constante vigilância do mundo. É um sentimento que ultrapassa a racionalidade e a militarização de “esporte de combate”. É beleza embriagada e cantada. Signo móvel que desloca sentidos inesperados e não oficializados pela linguagem. É a possibilidade de buscar saídas em lugares inusitados. Transformar a esquiva em ataque.A dor em sorriso. Desmanchar a inocência transfigurada em pontos de desterro. É acima de tudo a vida que permanece gingada sem os ocasos da temporalidade.
Um turbilhão de acontecimentos canta com a capoeira. Todavia, a ambigüidade disfarçada na máscara ritual encobre ou, em outros casos, revela as possíveis disputas na formação discursiva da capoeira. Dois possíveis elementos conceituais trespassam a ginga da capoeira na formação da Capoeira de Angola e da Capoeira Regional. É o discurso da eficiência e da vadiação. Na realidade essa polêmica revela uma suposta segmentaridade assinalada por Deleuze.
Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estados que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente (Deleuze, 1996, p.83).
E, de alguma forma, a tensão parece encontrar outro lugar em Castoriadis, nas Encruzilhadas do labirinto V, entre a dimensão poiética e lógica que participam da vida humana. Essa dupla dimensão recompõe armadilhas postas na vida cotidiana. A possibilidade de escapar às adversidades da vida é a grande marca do homem. Viver é correr riscos e reinventar constantemente o inusitado, caótico potencializado da arte da criação.  Para Castoriadis,
A dimensão poiética do ser humano, criadora, portanto, irredutível, inexplicável, parece deixar de lado toda dimensão lógica. Ora, não é nem um pouco assim. Uma das primeiras constatações que fazemos quando começamos a refletir é que há uma dimensão – que corretamente é chamada “lógica”(...). Eis por que digo que estas duas dimensões, conídica e poiética, são sempre densas, como se diz em topologia: tão perto quanto possível de um elemento de uma, encontraremos um elemento de outra. Mesmo na loucura, é evidente.
Entretanto, as segmentaridades deleuzianas podem ser trespassadas por fluxos e linhas de fuga. De um lado a racionalidade não consegue abarcar o mundo e de outro as classificações são insuficientes e, nesse caso, sempre vaza algo ou alguma coisa. Conforme Deleuze (1996, p. 94), Um fluxo molecular escapava, minúsculo no começo, depois aumentando sem deixar de ser inassimilável.
A disputa discursiva imiscuída nas rodas e cantigas de capoeira não impedem o seu bailado, apesar da visibilidade de sua constituição. Um canto de capoeira de Mestre Tony Vargas, do Rio de Janeiro, apud Falcão (1996, p. 34-35), revela a tensão que se constitui na binária ordem da capoeiragem.
(...)Não se vê mais negativa
onde é que anda a rasteira
Nunca mais vi meia-lua
Inventaram a tal ponteira.
Não se vê um cabra leve
Brincando na bananeira
Isso me deixa confuso
Será que isso aí é capoeira(...)
(...)Todo mundo de cara amarrada
Oh meu deus todo mundo querendo brigar
Só na boca de espera
Mas sem saber como esperar
A capoeira era do povo
Foi parar em outro lugar
Isso pode ser mais acirrado quando a capoeira passa a ser reconhecida pela Confederação Brasileira de Pugilismo – CBP, em 1973. Segundo Falcão,
O regulamento trata a capoeira de forma essencialmente desportivizada com regras e procedimentos típicos dos esportes do ramo pugilístico. Designa a roda  de “área de combate e deixa transparecer a idéia de que a capoeira não passa de um combate corporal ( Falcão, 1996, p. 39).
É nesse sentido que a poética da capoeira deve marcar a possibilidade de recomposição do discurso da “vadiação” a partir de necessidades postas pelo cotidiano ou pela formação de novos acontecimentos. É a brincadeira que constitui a capoeira para além do discurso da eficiência. É nesse terreno que a embriaguez sobrevive. Esse é o elemento constituidor da capoeiragem. Para além da disputa acirrada (Angola x Regional) encontra-se na embriaguez a linha de fuga que trespassa a segmentaridade binária posta pelo discurso da eficiência.
A capoeira possibilita a criação. É, na realidade, a própria criação de movimentos entrelaçados ao canto, dança e teatro. De acordo com Rego (1968, p. 35),
Dos toque e golpes primeiros, de uso de todos os capoeiras, uma boa parte foi esquecida, permanecendo uma pequeníssima e uma outra desapareceu (...). Como exemplo disso  posso citar o toque do berimbau chamado aviso, ainda do conhecimento do capoeira Canjiquinha. Segundo corre na transmissão oral dos antigos capoeiristas, era comum ficar um tocador de berimbau, num oiteiro, onde se divisava uma área enorme, com a finalidade de vigiar a presença do senhor de engenho, capataz ou capitão do mato, no encalço deles. Uma vez notada a aproximação desses inimigos, era dado um aviso, no berimbau, através de um toque especial.
O mesmo ocorria com o toque da cavalaria. Esse toque era utilizado, segundo Rego (1968, 35), para denunciar a presença do esquadrão da cavalaria que atuava contra o candomblé e a capoeira baiana.
No caso da embriaguez, temos relatos de forte ligação que vai além da embriaguez estética ou teatralizada no êxtase dionisíaco. Não havendo academias ou lugares fechados que abrigassem a prática do jogo de capoeira, tem-se conhecimento dessa prática em lugares que se aproximassem de quitandas ou vendas de cachaça.
Aí , aos domingos, feriados e dias santos, ou após o trabalho se reuniam os capoeiras  mais famosos, a tagarelarem, beberem e jogarem capoeira. Contou-me Mestre Bimba, que a cachaça era a animação e os capoeiras, em pleno jogo, pediam-na aos donos das vendas, através de toque especial do berimbau, que eles já conheciam (Rego, 1968, p. 36).
É que o símbolo participa da vida. Passa a fazer parte de necessidades espirituais do homem, correspondendo à possibilidade de reinventar ou (re)visitar a humanidade anteriormente constituída. De acordo com Eliade,
O símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camuflá-la, mutilá-la, degradá-la, mas que jamais poderemos extirpá-la (...). Cada ser histórico traz em si uma grande parte da humanidade anterior à História ( Eliade, 1996, p. 7-9).
É nesses termos que se poderia pensar a constituição do discurso poético do mito. A embriaguez dionisíaca resvala no apolíneo como partícipes da tragédia grega. Elementos tão diferenciados convivem pela harmonia de Apolo ou pelo Êxtase Entusiástico do deus do vinho.
   
2 APOLO E DIONISO PARTICIPAM NO CENÁRIO TRÁGICO E VIVIFICAM A IMAGEM DA TEATRALIDADE NA ARTE DA CAPOEIRAGEM

Apolo[2] é a representação do equilíbrio e da harmonia. É saudado na mitologia por inúmeros atributos. Deus da luz, Apolo é o brilho e a força do Sol. Nasce no dia sete do mês délfico. Sua lira possuía sete cordas. Sua doutrina contém sete máximas. É o deus da sétima porta, de acordo com as ilações de Ésquilo.
Alto, bonito e majestoso, o deus da música e da poesia se fazia notar antes do mais por suas mechas negras, com reflexos azulados, “como as pétalas do pensamento”. Muitos foram assim seus amores com ninfas e, por vezes, com simples mortais (Brandão, 1999, p. 87).
Amou  a ninfa náiade Dafne[3], filha do deus-rio Peneu. Com a ninfa Cirene, teve o semideus Aristeu
Também as musas não escaparam aos seus encantos. Com Talia foi pai dos Coribantes, demônios dos cortejos de Dionísio; com Urânia gerou o músico Lino e com Calíope teve o músico, poeta e cantor insuperável Orfeu. Seus amores com a ninfa Corônis, de que nascerá Asclépio(...). Com Marpessa, filha de Eveno e noiva do grande herói Idas, o deus igualmente não foi feliz. Apolo a desejava, mas o noivo a raptou num carro alado, presente de Posídon, levando-a para Messena, sua pátria. Lá, o deus e o mais forte e corajoso homem se defrontaram. Zeus interveio, separou os dois contendores e concedeu à filha de Eveno o privilégio de escolher aquele que desejasse. Maspessa, temendo que Apolo, eternamente jovem, a abandonasse na velhice, preferiu o mortal Idas. Com a filha de Príamo, Cassandra, o fracasso ainda foi mais acentuado(...). Em Cólofon, o deus amou a advinha Manto e fê-la mãe do grande advinho Mopso(...). Com Evadne teve Íamo, ancestral da célebre família sacerdotal dos Iâmidas(Brandão, 1999, p. 87-88).
Para Nietzsche ( 1998, p. 28), o grande plasmador apolíneo  representa o mundo do sonho em cuja produção cada ser humano é um artista consumado. Nesse caso, a experiência onírica  resplandece em enlaces divinatórios que se consubstanciam  no reino da luz e da fantasia
Apolo, na qualidade de deus dos poderes configurados , é ao mesmo tempo o deus divinatório. Ele, segundo a raiz do nome o “resplandente”, a divindade da luz, reina também sob a bela aparência do mundo interior da fantasia.
Dioniso[4] é trazido a nós pela representação da embriaguez. É a personificação do vinho. Inventor do teatro. Por isso está associado a Melpomene, a musa da tragédia. Também por isso é o deus da transformação (metamorphosis).
Dioniso se constitui na embriaguez através da  reelaboração da divindade sem deus.  É o deus perseguido. Todavia,
...a perseguição  a Dioniso, sob a perspectiva mítica, faz parte de um rito iniciatório e catártico: a purificação pela água. Este é um dos temas bem atestados em quase todas as culturas primitivas. O episódio da perseguição aparece em determinados momentos das festas e cerimônias a que o filho de Sêmele presidia (Brandão, 1999, p. 115).
Sob a magia de Dioniso ou sob a influência da beberagem narcótica, tal como Nietzsche   afirma na Origem da tragédia no espírito da música,
...todos os povos e  homens primitivos falam em seus hinos, ou com a poderosa aproximação da primavera a impregnar toda natureza de alegria, despertam aqueles transportes dionisíacos, por cuja  intensificação o subjetivo se  esvanece em completo auto-esquecimento (Nietzsche, 1998, p. 30)
A harmonia  e a necessidade da medida eram exigidas nas configurações apolíneas.  O dionsíaco trouxe a desmesura  e a desconfiguração.  É necessário ultrapassar a aparência  em busca de novos signos ou mediações estéticas. É que a possibilidade  da criação não se inscreve no campo normativo.
O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, afundava aqui no auto-esquecimento do estado dionisíaco e esquecia os preceitos apolíneos. O desmedido  revelava-se  como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores, falava por si desde o coração da natureza. E foi assim que, em toda parte onde o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e aniquilado (Nietzsche, 1998, p. 41).
É nesse campo que a pedagogia dionisíaca se interpõe ao normativo e transforma deus no artista que, do palco da vida, reescreve e reinventa o mundo. No Assim falou Zaratustra, Nietzsche (1986, p. 58) assinala:
Eu acreditaria somente em um deus que soubesse dançar. E,  quando vi o meu Diabo, achei-o sério e metódico, profundo, solene: era o espírito de gravidade (...). Não é com ira que se mata, mas com riso. Eia,  pois  vamos matar o espírito de gravidade!    
3- A DANÇA DO BÊBADO NA RODA DE CAPOEIRA: UM MODO ESPETACULAR DE EMBRIAGUÊZ
Capoeira é arte do fingimento. Disfarce teatralizado do jogo que dança uma luta de guerra. Dispositivo que trafega pelos caminhos de relaboração.  Trapaça montada no cenário da roda que gira o mundo entoado pelas cantigas de saudade, pelo choro do berimbau e/ou pela potência compassada do pandeiro e do atabaque. Capoeira é um espetáculo[5] e, em alguns casos, constitui personagens. De acordo com PRADIER (1999: 24),
Por “espetacular” deve-se entender uma forma de ser, de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma forma distinta das ações banais do cotidiano.
Capoeira compreende as artes do espetáculo como a dança e o teatro. É um jogo que joga uma luta de guerra. Avança no cenário da roda - a ginga, malícia e falsidade participam deste espetáculo. Poder acertar e não fazer. Marcar o ponto de desequilíbrio no compasso bailando na volta que o mundo dá. Faz e desfaz o encanto de um personagem que ginga nesse bailado e esquiva de dentro para fora na guarda do outro. Algo escapa ao cenário montado.
O jogador corre como se vivesse um duelo de vida e morte. Como se o seu desafeto fosse extremamente superior – puro disfarce. O corpo é tomado de empréstimo. Pela mandinga bailada na roda surge um bêbado desequilibrado. Ele dança de um lado para outro. O dançarino ator percorre a roda. Lança o seu personagem no jogo que continua bailando no compasso da musicalidade. É que a dança e o teatro participam de uma ação espetacular, ou como esclarece BARBA (1995, p. 12): A tendência de fazer distinção entre dança e teatro, característica da nossa cultura, revela uma ferida profunda, um vazio sem tradição, que continuamente expõe o ator a uma negação do corpo e o dançarino para a virtuosidade. Para o artista oriental esta distinção parece absurda.
É como se a produção de personagens na capoeira fosse diluída pelo bailado do dançarino. Na realidade a capoeira encontra os seus personagens referenciados em suas práticas, costumes e produção cultural. Multiplicidade de ações e acontecimentos interpretados são revividos em nomes, gestos, sentidos e acontecimentos: Bêbado, malandro, velho, fraco, instrumentos de defesa (arma) ou simplesmente a produção de um acontecimento. Dentre tantos e complexos sentidos e acontecimentos vividos e possíveis de interpretar em rodas de Capoeira Angola[6], podemos citar alguns que foram partilhados em nossa pesquisa de campo. Participei do IV Encontro de Capoeira Angola. O evento que reuniu os principais mestres de capoeira do Recôncavo Baiano - O 4º ano de memória viva do Mestre Ferreirinha. Este evento que se realizou nos dias 6 e 7 de Julho de 2002 encerrava-se com palestras e uma grande roda de capoeira. Iniciada com uma roda só de alunos e, em seguida, o cenário da roda é convertido no grande espetáculo do dia - a roda dos alunos formados e mestres. Nesta roda aluno não entra. Foi aí que vi alguns dos principais mestres da região jogar: mestre Adó, Mestre Macaco, Mestre Dimas, Mestre Felipe, Mestre Carcará, Contra-mestre Lampião, Contra-mestre Ivan de Ferreirinha.  Foi um grande presente, confesso.
Quando vi pela primeira vez achei entranho. Mestre Carcará jogava com o Contra-mestre Ivan. O jogo era iniciado quando mestre Carcará puxava o seu oponente para o centro da roda e se lançava ao solo com as mãos estendidas para que as pernas passassem por cima de seu corpo, concluindo assim o AU que, naquele contexto, era sinal de que o jogo se iniciara. Mestre Carcará ginga de um lado para o outro e, o menor sinal de descuido é penalizado com um martelo. Foi então que entre martelos e esquivas, Ivan de Ferreirinha inicia o jogo do Bêbado. As pernas balançavam sem – aparentemente – atender a qualquer possibilidade de comando. Como se não conseguisse manter o corpo em situação de repouso. Como se estivesse perpetuando uma topada que acabara de receber. Por outro lado, o movimento dos braços passeia pelo rosto, tórax como se tentasse agarrar o vento ou um ponto qualquer de equilíbrio imaginário. O que mais me chamou atenção foi o rosto e a expressão que transbordava de seu semblante. Era uma mistura de alegria, felicidade, êxtase, embriaguez e, acima de tudo, falsidade e malícia. Tudo aquilo refletia a mimética forma de capturar e expressar a construção de um papel ou de um conceito de fragilidade que seria transmudado pela arte da malandragem. Ora, a embriaguez era, naquele contexto, a possibilidade de mostrar-se enfraquecido para acertar o outro pela incerteza e falsidade e, realmente, o menor descuido, Mestre Carcará poderia ser atacado. Entre martelos, rasteiras e ponteiras, encontro outro acontecimento encenado na roda.
O Contra-Mestre Ivan entre uma esquiva e um ataque para o jogo e, como em filme mudo, utiliza alguns gestos procurando nos bolsos da sua calça a sua própria carteira. O sentimento de admiração e espanto invade o capoeirista que pede ajuda aos partícipes da roda para encontrar a sua carteira. E quando todos se empenham em caçar tal objeto perdido, o Contra-mestre Ivan marca uma chapa de costas contra o mestre Carcará e o jogo continua.
Na mesma roda Mestre Felipe e Mestre Carcará jogavam com uma cadência invejável. Cada ponto marcado era coberto com um bloqueio ou uma esquiva perfeita. No tempo do jogo. Na mandinga que marca um ponto de desequilíbrio e desfecha um martelo ou rabo-de-arraia. Quando ninguém esperava, Mestre Carcará, para o jogo. Como se pedisse piedade – tudo falsidade – convoca um iniciante para jogar em seu lugar. Normalmente nenhum membro da roda aceita o convite. Até que um iniciante desavisado aceita tomar as dores do mestre. É recebido com uma chapa. Deixa rapidamente o jogo e os capoeiristas que estavam jogando continuam o espetáculo.
Podemos citar ainda a utilização de instrumentos que fizeram parte da indumentária dos capoeiristas e, com o tempo, foram abolidos. É o caso da navalha. O jogo com navalha no pé era comum na escola de Besouro Mangangá, do Recôncavo Baiano. Cobrinha Verde – aluno de Besouro – transmitiu esse ensinamento aos seus alunos. Entretanto, destaco a utilização da navalha na roda de capoeira imersa ao cenário da roda e do joga da capoeira. A navalha aparece como uma brincadeira. É um elemento que anima a roda em determinado tipo de jogo.
Mestre Curió – por exemplo – em um jogo de capoeira, sai da roda vai até uma mesa que se encontra na entrada do salão onde funciona sua academia, no pelourinho, empunha um objeto – grampeador – como se fosse uma navalha. Investe contra o seu oponente dando continuidade ao jogo.
Lembrar a navalha é, na realidade, rememorar um tempo em que este instrumento participava da roda quando se jogava com a navalha no pé.  Apesar de tudo isso, a capoeira não precisa ser teatro – configurar-se enquanto tal – para existir. Como espetáculo ou ação espetacular ela torna-se o seu próprio modo de conceituação ou de expressão. É quando Khaznadar (1999, p. 56) ao referir-se ao conceito de etnocenologia e o debate que cerca esse conceito, inquirir:
 E se estudássemos e documentássemos estas formas espetaculares não mais como referência a uma forma estabelecida e desenvolvida como a do teatro ocidental, mas simplesmente a partir dos conceitos das culturas e das civilizações que produziram tais formas?
Nesse caso, aquilo que Jean Duvignaund (1999, p. 31) chamou de polifonia da expressão social, ou uma partitura onde os seres hodiernos atuam sem hierarquia em diversos níveis e celebram seus amores, aplacam seus sonhos no porvir que se encantam com as festas e clamores. Tornam mágicos os símbolos, cantam, dançam, inventam a poesia, o mito e a representação.
Essas ações espetaculares que o homem inventa das mais diversas formas para celebrar a vida encontram-se imersas em uma cultura e uma civilização e, neste caso, não seria plausível submete-las aos cânones do teatro ou da dança convencional. É o que Khaznadar(1999, p. 56) afirma quando lembra  o tratado de Zeami para o estudo de um Nó e o Nataya Shastra – Um Nó não é teatro é um Nó, o Kathakali, a mesma coisa, e assim por diante. Tomando de empréstimo esse conceito de espetáculo, poderia dizer o mesmo em relação a capoeira. A capoeira não é teatro é capoeira, mas inegavelmente é dança que se pode deslocar para um cenário de guerra.
O conceito de espetáculo amplia consideravelmente a possibilidade de investigar as artes do espetáculo sem ter de seguir necessariamente os cânones do teatro tradicional. Isso não quer dizer que não se possa localizar elementos de teatralidade na capoeira, particularmente, na Capoeira Angola. Em relação a Capoeira Regional – que também é uma forma de espetáculo -, torna-se mais difícil encontrar elementos de teatralidade pela rapidez do jogo e dos movimentos. O tempo e o espaço do jogo são diferentes. Prioriza-se muito mais a dança/luta. Isso faz com que alguns grupos de Capoeira Regional limitarem essa arte ao aspecto esportivo de uma arte marcial.
Entretanto, as diferenças existentes entre a capoeira angola e a regional resguardam os elementos particulares que diferem estas modalidades de capoeira e, neste caso, a capoeira é entendida simplesmente como espetáculo. Resta saber como essa expressão “espetacular” produz suas formas e matrizes estéticas? Como constituem seus modos de espetáculos? Como transitaram pela história? Que mudanças estéticas foram acrescidas a suas práticas corporais?
Cantar com seus símbolos, nomes e acontecimentos é parte de um segredo que pulsa a tensão de um tempo marcado pela diversidade de caminhos.  Os nomes, símbolos e rituais revivem na memória e nos feitos hercúleos de seus partícipes. Entretanto, alguns indivíduos marcam o seu momento histórico com tanta potência que a força de suas ações, dificilmente, poderia ser esquecida; pois, se o esquecimento nos protege das dores, não impedirá que os homens sintam saudade ou rememorem os seus mitos, símbolos e imagens. De acordo com ELIADE (1991:07), o símbolo, o mito, a imagem pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camufla-los, mutila-los, degradá-los, mas que jamais poderemos extirpá-los.   
Em alguns casos, esses indivíduos transmudam-se em divindades, mitos ou heróis. São olimpianos que viveram um ritual de passagem e, ao mesmo tempo, estendem a própria morte ao constante reinício, recolocando em novo lugar o dilema da transitoriedade humana. Já que trafegam no interstício da vida e da morte, ganham uma condução divina no esplendor das luzes celestiais movidas pelas fendas da história.
Na realidade eles não morreram. São cantados, relatados, narrados, descritos pela literatura ou arquivados em documentos que, no presente, devem simplesmente ser encontrados. Alguns homens deixam pistas de sua passagem pela história. Deixam marcas, indícios ou pegadas, para que o historiador tenha um mínimo de entretenimento.
Temos ainda a possibilidade de reencontrar pistas ou vidas a partir da literatura, reinventando a cena cotidiana com a força da oralidade. Valeria a pena estudar – de conformidade com ELIADE (1991:07) - a sobrevivência dos grandes mitos durante o século XIX. Veríamos como, humildes, enfraquecidos, condenados a mudar incessantemente de emblema, eles resistiram a essa hibernação, graças sobretudo a literatura. A possibilidade de preservar os mitos e símbolos – quase esquecidos pelo tempo ou pela história oficial – implica, dentre outras coisas, o poder que a literatura tem de trapacear com a língua; a trapaça salutar proposta por BARTHES (1978: 16) também denominada literatura.
Só nos resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear com a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu o chamo, quanto a mim: literatura (BARTHES, 1978: 16).

1-      REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBA, Eugenio e SAVARENSE, Nicola. A arte secreta do ator. São Paulo: HUCITEC/UNICAMP.
BENJAMIN, Walter. A Imagem de Proust. In. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. P. 36 – 49. 
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1999. 336p.
CARNEIRO, Edison. Capoeira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. 23p.(Cadernos de Folclore, 1).
CASTORIADIS, Cornélius. Feito e a ser feito – As encruzilhadas do labirinto V. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. 304p.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 238p.
DELEUZE, Giles. GUATTARI. O Anti-Édipo – Capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assírio & Alvin,1996.
_____. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. 120 p.
DUVIGNAUD, Jean. Uma nova pista. In. Etnocenologia – Textos Selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião (orgs). São Paulo: Annablume, 1999. 31-32p.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos – ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 178p. 
FALCÃO, José Luiz Cirqueira. A Escolarização da capoeira. Brasília: ASERF – Royal Court, 1996.155p.
KHAZNADAR, Chérif. Contribuição para uma definição do conceito de etnocenologia. In. Etnocenologia – Textos Selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião (orgs). São Paulo: Annablume, 1999. 55-59p.
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana. São Paulo: Opus, 1991. 
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
_____. O Nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
OLIVEIRA, Waldir Freitas & LIMA, Vivaldo da Costa. Cartas de Édison Carneiro a Artur Ramos – De 4 de janeiro de 1936 a 6 de Dezembro de 1938. São Paulo: Currupio, 1987. 190p.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia.  In. Etnocenologia – Textos Selecionados. Christine Greiner e Armindo Bião (orgs). São Paulo: Annablume, 1999. 23-30p.
REGO, Waldeloir. Capoeira angola. Salvador: Itapoã, 1968. 417p.
SODRÉ, Muniz. Prefácio. In. Água de beber Camará! Um bate-papo de capoeira. Salvador: EGBA, 1999. Pp. 13-20.



[1] Professor Associado III do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC. Coordenador Editorial da Coleção Diálogos Intempestivos da FACED/UFC. Bacharel em Filosofia Política. Mestre e Doutor em Sociologia. Pós-Doutor em Artes Cênicas.(UFBA)..

[2] De acordo com Brandão ( 1999, p. 85), o Apolo pós-homérico vai progressivamente reunindo elementos diversos, de origem nórdica, asiática, egéia e sobretudo helênica e, neste último aspecto, conseguiu suplantar por completo Hélio, o Sol propriamente dito. Fundindo numa só pessoa e em seu mitologema, influências e funções tão diversificadas, o deus de Delfos tornou-se uma figura mítica deveras complicada. São tantos os seus atributos, que se tem a impressão de que Apolo é um amálgama de várias divindades, sintetizando num só Deus um vasto complexo de oposições. 
[3] Apolo, gracejando Eros em relação às suas flechas,  motiva o filho de Afrodite a comprovar o venenoso poder de suas flechas amorosas. Contudo, Eros não só possuía o dom  de causar amor ferindo com as pontiagudas flechas, mas, também,  a repulsa. Isso ocorre com Dafne que, flechada com a flecha da repulsa, vê Apolo desesperado perseguir-lhe, picado com a flecha do amor. A ninfa se desespera e não corresponde aos desejos de Apolo. Quando estava perto de ser alcançada pelo deus, pede ao pai que a ajude. O pedido foi atendido pelo deus-rio que a metamorfoseia em um loureiro, árvore predileta de Apolo.   
[4] Segundo Brandão ( 1999, p. 117),  viu-se que o deus do êxtase e do entusiasmo, até mais ou menos a década de 50, era considerado como uma divindade que chegara tardiamente à Hélade. Pois bem, a partir de 1952, as coisas se modificaram: é que a decifração de uma parte dos hieróglifos cretomicênicos por Michael Ventris, segundo se mostrou no Vol. I, p. 53, ou mais  precisamente, a decifração da Linear b, consoante a classificação de Arthur Evans, demonstrou que o deus já estava presente na Hélade pelo menos desde o século XIV ou XIII  a c, conforme  atesta a tabela X de Pilos. Há de se perguntar  por que um deus tão importante, já documentado no século XIV, só se manifesta, e de forma aparentemente grotesca, no século IX, e só a partir dos fins do  século VII a C. tem sua entrada solene na mitologia e na literatura? É quase certo que o adiado  aparecimento  de Dioniso e sua tardia  explosão no mito e na literatura se deveram sobretudo a causas políticas (...). Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios. Com seu êxtase e entusiasmo, o filho de Sêmele era uma séria ameaça à polis aristocrática .
[5] Não utilizaremos o conceito de espetáculo que ficou muito conhecido nos anos 60, com Guy Debord. Para referido autor, espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é o suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real.(DEBORD, 1997, P. 14) . Esta abordagem extremamente limitada do espetáculo filia este conceito a uma base material e, conseqüentemente, a um determinado modo de produção. É um mero reflexo da base material da sociedade. Inversamente, entendemos que as possíveis manifestações espetaculares resultantes da criação e do gênio humano inventadas para celebrar conforme PRADIER (1998, P. 24) , os deuses da natureza, chorar os mortos , glorificar os vivos, dar prazer, provocar angústias ou admiração, convencer, seduzir, festejar o amor, aplacar instâncias invisíveis, solenizar os reencontros, rir, zombar, recitar, curar e que tem todas uma característica comum: a de associar estreitamente o corpo e o espírito num acontecimento social espetacular?ou como diria KHAZNADAR (1998, P. 58) – para demarcar o campo da etnocenologia -, a etnocenologia estuda, documenta e analisa as formas  de expressões espetaculares dos povos. Por espetáculo, deve-se entender, as formas de expressão de uma cultura que escapam aos códigos e normas do teatro tradicional. A etnocenologia é, enfim, o conceito e a disciplina que permite dar, outra vez, aos povos, os meios para praticar os seus próprios sistemas de referências, para se libertar das ideologias dominantes e resistir à uniformização cultural (KHAZNADAR, 1998, P. 59).    
[6] Utilizo esse conceito a partir das referências teóricas já existentes e aceitas no estudo da capoeira. Não estabeleço uma relação imediata entre a capoeira Angola e a capoeira que existia antes da Capoeira Regional. A Capoeira Angola é uma criação baiana que vai tomando forma na disputa com a Luta Regional Baiana de Mestre Bimba (1899/1900 – 1974) e se desloca para outros centros e países. Sobre isso vale ressaltar a carta de Édison Carneiro para Artur Ramos escrita em 27 de janeiro de 1936 – Mar Grande (Bahia). Neste documento, CARNEIRO (1987, P. 89), Nos cânticos de capoeira, identifiquei coisas muito interessantes: a) totemismo (a cobra); b)heróis dahomeizados (Antônio Pequenino, Desidério de Sauípe); lembranças da África (Aruandê – Loanda): sincretismo (“joelhos no pé da cruz...”); presença do mar (dona Maria), etc. A capoeira, aqui se chama também capoeira de angola. Penso encontrar uma remota origem da capoeira na cafuinha da Luanda que você cita no “Folk-lore”) (OLIVEIRA, W.F& LIMA, V. da C. , 1987, p. 89).    

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